O texto que se segue é um esboço de um texto mais completo que em breve será publicado como capítulo de livro já no prelo.
Inicio pelo lugar no qual me situo. Dois dos autores que trataram desse vasto e quase inesgotável tema são Campbell e Jung. Em resumo, ao tratar do mito, Campbell se situa no campo do “como” e Jung do “por que”, esses campos “epistêmicos” são complementares, e a psicologia que está na base de todo o pensamento de Campbell é Junguiana. Certa vez, ele até mesmo declarou que, após a morte de Jung, perdeu todo o interesse por acompanhar os desdobramentos das teorias psicológicas. Ambos se conheceram, Campbell e sua esposa Jean, passaram uma tarde inteira com o Casal Jung na Suíça.
Campbell possui uma definição de mito que considero uma das mais divertidas e, ao mesmo tempo, corretas. Principalmente em virtude do panorama de conceitos e significados que pretendo traçar. Segundo essa definição de Campbell “a mitologia pode, num real sentido, ser definida como a religião de outro povo. E a religião pode, num certo sentido, ser entendida como uma incompreensão popular da mitologia” (2002, p.39). Tal incompreensão consiste em tomar os símbolos míticos espirituais como referência a acontecimentos históricos, em outras palavras entender as imagens míticas de maneira denotativa, literal. Essa definição tem a grande vantagem de nos poupar tempo e esforço, ao invés de tentarmos encontrar o caminho histórico de duas palavras de significado extremamente mercurial: mito/religião, podemos considerá-las, cum grano salis, razoavelmente intercambiáveis. É interessante notar que o termo mito entrou para o vocabulário popular com dois sentidos bastante distintos, como mentira, e, paradoxalmente, como algo assombroso, fora do comum ou extraordinário. É comum ouvir alguém desqualificar algo dizendo “isso não passa de um mito”, ou, ao se referir a alguém extraordinário afirmar “ele tornou-se um mito”. Mas me adianto. Campbell não se limitou a esse jogo palavras carregado de ironia, seu estudo comparado de praticamente todas as tradições míticas do planeta o levou a elaborar outras definições possíveis, que se encaixam harmoniosamente no mosaico de sua singular filosofia. Para ele:
A mitologia é um sistema de imagens que dota a mente e os sentimentos de um sentido de participação num campo de significado. As diferentes mitologias definem os significados possíveis da experiência de uma pessoa em termos do conhecimento do período histórico, bem como o impacto psicológico desse conhecimento difundido através de estruturas sociológicas sobre o sistema complexo e psicossomático conhecido como ser humano. (Campbell, 2009, p.39).
Esse sentido, atribuído a Campbell para a mitologia, situa a vida humana num determinado tempo e lugar, e suas possibilidades de sentido e significado nesse dado tempo e lugar. Esse é um lado da moeda, e está relacionado à pelo menos duas das quatro funções do mito sugeridas por Campbell (mística, cosmológica, sociológica e psicológica). Para ele, somos como marsupiais, nascidos antes do tempo, de maneira incompleta, os mitos são como a bolsa da mãe canguru, que nos nutrem e protegem, permitindo que cresçamos enquanto estamos fracos e indefesos para termos um segundo nascimento, por isso, as imagens míticas não precisam fazer sentido, elas precisam nos deixar confortáveis. O mito possui igualmente um sentido que escapa ao tempo cronológico ou a qualquer lugar específico, algo de intemporal que cala fundo em nossa alma e está além e aquém do tempo e do espaço, nesse sentindo:
Uma mitologia pode ser entendida como uma organização de figuras metafóricas conotativas de estados de espírito que não pertencem definitivamente a este ou àquele local ou período histórico, embora as figuras elas mesmas pareçam superficialmente sugerir uma tal localização concreta. As linguagens metafóricas tanto da mitologia quanto da metafísica não denotam mundos ou deuses reais, e sim conotam níveis e entidades no interior da pessoa tocada por elas. As metáforas apenas aparentam descrever o mundo exterior do tempo e do espaço. Seu universo real é o domínio espiritual da vida interior. O Reino de Deus está no interior de você. (Campbell, 2009, p.37).
Concordo com Campbell, apesar de que, em termos psicológicos, ele vai um pouco longe demais. Todavia, é extremamente útil para compreender os mitos ter em mente que, em termos psicológicos, o outro mundo, o mundo dos mortos, o reino de Deus, a terra das fadas, estão dentro de nós. Ou, dito de maneira melhor, não sabemos se eles correspondem a uma realidade metafísica, isso é um mistério, mas podemos afirmar com certeza que correspondem a uma realidade anímica. Recentemente lia uma revista em quadrinhos de um de meus autores favoritos, Mike Carey, chamada “the furies”, em determinado momento, Chronus ao se referir a um dos perpétuos “dream” o sonho, ou melhor, a sua morte e ao posterior ressurgimento de um novo senhor dos sonhos que, paradoxalmente era o velho Sandman, ele diz (traduzo): “mas, parece que o universo precisa de certos pontos fixos para poder funcionar. Havia uma criança. Novamente uma criança humana, mas que havia sido concebida nos sonhos. E que teve seu aspecto mortal consumido por fogo taumatúrgico. Ele se tornou o novo sonho, o zelador do inconsciente humano. Pois a imortalidade reside no papel não no ser que o desempenha”. É exatamente isso que Campbell aponta com essa passagem e que, em certa medida, Jung também demonstra em sua vasta obra. Jung assevera o mesmo que Campbell acerca da utilidade dos mitos:
O mito religioso é uma das maiores e mais importantes aquisições que dão ao homem a segurança e a força para não ser esmagado pela imensidão do universo. O símbolo, observado sob o ponto de vista do realismo, não é uma verdade concreta, mas psicologicamente ele é verdadeiro, pois foi e continua sendo a ponte para as maiores conquistas da humanidade. (Jung, 1999, p.220).
Não apenas o reino de Deus está em você, essa não é a única compreensão que Campbell extrai de seus exaustivos estudos, o tempo no mito também possui um profundo caráter metafórico, pois, em muitos e muitos mitos há alusão a eternidade, como a recompensa que advirá após a morte ou após algum cataclismo, entendida como um tempo futuro, ou um “lugar” além do tempo, ou com a possibilidade de uma vida eterna, no sentido de uma vida do corpo que se estenderia para todo o sempre. Todavia, afirma ele “A eternidade não possui relação alguma com o tempo. O tempo é que exclui alguém da eternidade. A eternidade é o agora. É a dimensão transcendente do agora a que o mito se refere” (2008, p.24). Mantenham isso em mente: eternidade é o agora e o reino de deus está em você.
Em larga medida, Campbell e Jung, podem ser compreendidos como funcionalistas, nesse sentido, Campbell pode receber esse adjetivo com mais propriedade, já a formulação Junguiana é mais sutil e complexa, mas, cum maximo grano salis, pode-se também afirmar que Jung é um funcionalista. Nesse sentindo, Campbell afirma “a imagem mítica mostra a forma pela qual a energia cósmica se manifesta no tempo; à medida que mudam os tempos, mudam os modos de manifestação”. Campbell procura explicar esse aparente paradoxo nos mitos apelando para as idéias de Adolf Bastian (o que já colabora com o objetivo maior desses escritos). Ao se deparar com os paralelismos míticos, Bastian – que foi um grande médico, viajante e antropólogo alemão do século XIX – cunhou os termos Elementargedanken e Völkengedanken. Pois, para cada símbolo mítico existem dois aspectos: o universal e o local. Na cultura da índia se encontram termos similares para se referir a essa mesma realidade, marga e deshi, marga é o aspecto universal, humano geral e deshi o que liga o humano a cultura. “O imaginário do mito é a língua, uma língua franca que expressa o básico sobre nossa humanidade mais profunda. Ela assume diversos sotaques nas suas várias regiões”. Para Campbell, os deuses representam “forças protetoras que sustentam o indivíduo em seu campo de ação”, o que nos conduz uma vez mais a uma explicação psicológica.
Creio que é interessante, nesse momento, falar da perspectiva de Jung. O psiquiatra e psicólogo suíço, assim como Campbell, se debruçou sobre o estudo dos mitos, todavia, isso é causa de muita incompreensão e maus entendidos. Diferente de Campbell, Jung não era mitólogo ou estudioso de religiões, era psicólogo. Seus estudos nesse campo atendiam a seus interesses como psicólogo e, todas as suas digressões intelectuais possuíam o objetivo prático de auxiliar sua atividade clínica, algo que aqueles que são atraídos a sua obra simplesmente pelo “canto de sereia” dos mitos, teimam em ignorar. Em suas próprias palavras “foram razões eminentemente práticas que me levaram a fazer essas pesquisas históricas, e não um simples capricho ou um ‘hobby’ qualquer”. Mas logo isso se tornará mais claro, espero.
As considerações de Jung sobre a mitologia se devem, como já disse, ao seu esforço clínico para compreender os fenômenos envolvidos na psicose e esquizofrenia, bem como para melhor compreender os sonhos e fantasias de seus pacientes. Jung postula a existência de uma psique objetiva, sem a qual a existência de uma psicologia científica torna-se problemática. Para Jung, o psiquismo é sempre algo extremamente paradoxal, e, para lhe fazer jus, as formulações psicológicas devem igualmente ser paradoxais. Qualquer afirmação sobre a psique deve ser antinômica, como vimos até aqui, os mitos nos levam a ter de lidar com a antinomia entre geral e particular, o que também é apontado por Jung. Ele compara o psiquismo à situação ambígua da luz na física, mas a comparação tem um limite, enquanto a descrição da luz repousa sobre apenas uma antinomia: partícula/onda, a psique, por ser infinitamente mais complexa, só pode ser descrita com várias antinomias: a psique depende do corpo e o corpo da psique; o individual não importa diante do genérico e o genérico não importa perante o individual; Consciência e inconsciente, etc.
Para Jung, a consciência surge e se diferencia de bases arcaicas e, o inconsciente do qual ele se diferencia é: anterior, simultâneo e posterior a ela. As bases sobre a qual se assentam a consciência são arquetípicas, para Jung um arquétipo nada mais é do que uma condição do psiquismo, uma pré-disposição, atemporal, acausal, para um comportamento humano típico. A mitologia e suas imagens majestosas possuem valor heurístico, elas permitem elucidar muitos dos significados dos sonhos e fantasias que surgem na clínica, pois, para Jung, devido a existência de uma psique objetiva, toda interpretação também é antinômica, ela pode se dar em dois níveis: nível do sujeito e do objeto. O nível do sujeito, como o nome mesmo já indica, está relacionado às associações e interpretações do próprio indivíduo, todavia também existe um nível de interpretação coletivo, graças a capacidade da alma de produzir material criativo e ser estruturada de maneira arquetípica, esse nível de interpretação é o que ele denomina de interpretação a nível do objeto. Além disso, as imagens e símbolos coletivos possuem poder de cura, segundo Von Franz, a única coisa capaz de curar é a manifestação de uma imagem arquetípica.
Parece que o processo de cura mobiliza essas forças para alcançar seus objetivos. É que as representações míticas, com seu simbolismo característico, atingem as profundezas da alma humana, os subterrâneos da história, aonde a razão, a vontade e a boa intenção nunca chegam. Isso porque elas também provêm daquelas profundezas e falam uma linguagem, que, na verdade, a razão contemporânea não entende, mas mobiliza e põem a vibrar o mais íntimo do homem. (Jung, 1981, p.13).
O poder curativo da imagem arquetípica se deve as características da consciência, que funciona segundo o circuito energético de: direção, seleção e exclusão, e, em sua adaptação ao mundo externo e ao universo interior, ao formar uma atitude psicológica, tende a unilateralidade, o que paradoxalmente nos leva a afirmação de que, quanto maior o grau de adaptação, mais próximo está o colapso da função adaptativa devido à verdade elementar de que tudo está eternamente mudando. Depois de certo tempo, para a consciência, a mudança e a adaptação as condições cambiantes, se torna amarga e difícil, e somente a imagem simbólica, com essa linguagem arcaica, pode mobilizar e operacionalizar na consciência a participação da libido inconsciente. Contribuindo para o objetivo mais geral desses escritos, boa parte das idéias de Jung acerca do arquétipo vem da teorização de Levy-Bruhl denominada représentations collectives, e o que Hubert e Maus chamam de Categorias “a priori” da fantasia.
A fantasia criativa, para Jung, desempenha um papel sumamente importante, em seu livro Símbolos da transformação, ele a classifica como uma das formas de pensamento possíveis, ao lado do pensamento dirigido, discursivo, todavia, diferente deste, o fantasiar é espontâneo e independe da vontade. Esse processo de fantasiar possui uma estreita ligação com a base instintual do ser humano, ele possui um poder libertador e o livra de sua pequenez e unilateralidade, e o eleva ao estado lúdico, para ele “toda obra humana é fruto da fantasia criativa” (1981). Campbell afirma em Mito e transformação, sobre os mitos e sua ligação com a fantasia, segundo ele “O mitos provêm de visões de pessoas que buscaram o seu mundo interno mais recôndito. Dos mitos surgem formas culturais (...) isto porque os mitos, como os sonhos, vêm da imaginação.”
O surgimento de imagens e símbolos que remetem ao simbolismo presente nos mitos na produção individual dos pacientes foi o que levou Jung a valorizar tais imagens, ou seja, uma demanda eminentemente prática. Assim como nos estudos comparativos dos contos de fadas e mitos, o estudo da psicologia do inconsciente se depara que motivos que se repetem com freqüência, esses motivos e figuras típicas que surgem espontaneamente em sonhos, visões e delírios, provêm da mesma fonte e se comportam da mesma maneira que as imagens míticas. Por isso, essas figuras que surgem repetidamente, apenas com roupagens diferentes, podem ser estudadas através dos motivos e figuras similares encontrados nos mitos e lendas de todas as eras. Devido a isso, a essas manifestações espontâneas da psique objetiva, a mitologia adquire grande importância, como ele mesmo afirma:
Por isso, é de extrema importância para mim ter a maior quantidade de informações possível, a respeito da psicologia primitiva, da mitologia, da arqueologia e história das religiões comparadas, pois essas áreas me fornecem preciosíssimas analogias, que servem para enriquecer as inspirações dos meus pacientes. Juntos poderemos fazer com que as coisas aparentemente sem sentido, se acerquem da zona rica em significado, favorecendo consideravelmente as ocasiões de se produzir a coisa eficaz. (Jung, 1981, PP 42 43).
É preciso que se diga, nesse momento, que poucos autores são tão incompreendidos quanto Jung. É comum que seu interesse por mitos seja confundido com misticismo ou como afirmações de cunho metafísico. Como meu intuito é esclarecer o pensamento acerca de mitologia de vários autores importantes, é de bom tom esclarecer esse mal entendido. Jung nunca foi nem filósofo nem tão pouco metafísico, em suas próprias palavras:
A verdade psicológica não exclui uma verdade metafísica. Mas a psicologia como ciência deve abster-se de quaisquer afirmações metafísicas. Seu objeto são a psique e seus conteúdos. Ambos são realidades efetivas, pois são eficazes. Apesar de termos uma física da alma, não podemos observá-la e julgá-la a partir de um ponto arquimédico externo, e portanto nada de objetivo sabemos ao seu respeito, pois tudo o que dela sabemos é ela própria, a alma é a experiência direta de nosso ser e existir. Ela é para si mesma a experiência única e direta e a “conditio sine qua non” da realidade subjetiva do mundo em geral. Ela cria símbolos cuja base é o arquétipo inconsciente e cuja imagem aparente provém das idéias que o consciente adquiriu. Os arquétipos são elementos estruturais numinosos da psique e possuem certa autonomia e energia específica, graças à qual podem atrair os conteúdos do consciente a eles adequados. Os símbolos funcionam como transformadores, conduzindo a libido de uma forma “inferior” para uma forma superior. (Jung, 1999, pp 220 221).
Mas, o objetivo desse texto é mostrar o qual a compreensão de mito dos autores elencados, no caso de Jung, ele também possui uma caracterização desse fenômeno. Essa caracterização se deve, ao fato deque, boa parte do trabalho psicológico consiste em delimitar de maneira mais clara, sem recair na inflação psíquica, deflação ou enantiodromia, os reais limites da personalidade empírica em relação as imagens autônomas da psique objetiva. Nesse sentido, os mitos desempenham uma função pedagógica extremamente importante no que concerne a adaptação da consciência do eu aos poderes inconscientes.
Foi este o significado vivo do mito, o de explicar ao homem desnorteado o que acontecia em seu inconsciente, que não o largava. O mito disse-lhe: isto não é você, isto são os deuses. Você nunca os alcançará, por isso volte-se para a vida humana, temendo e venerando os deuses” (Jung, 1999, p. 300).
O poder das imagens míticas advém justamente de sua conexão com a base instintiva do homem, e por possuírem caráter simbólico. Para Jung, simbólico e semiótico possuem significados completamente diversos, um sinal é distinto de um símbolo, pois ele simplesmente representa por analogia algo definido, como ONU é um “Sinal” convencional para Organização das Nações Unidas, ou as placas de transito. Em resumo, toda concepção que explica o símbolo por analogia ou abreviação é semiótica. O símbolo, por outro lado “(...) pressupõe sempre que a expressão escolhida seja a melhor designação ou fórmula possível de um fato relativamente desconhecido, mas cuja existência é conhecida ou postulada” (1991). Jung distingue pelo menos dois tipos de símbolos: símbolos vivos, que enquanto forem vivos são a melhor expressão possível de algo, ou seja, são prenhe de significado. Um símbolo “morto”, possui apenas valor e interesse histórico quando seu sentido já foi extraído dele e formulado ou expresso de maneira melhor. Enquanto o símbolo for vivo, ele é a forma insuperável de expressar aquilo que é pressentido. Um símbolo pode ser objetivo, quando sua natureza simbólica se impõe por ele mesmo, de maneira objetiva. Assim como pode existir algo que funcione como símbolo em virtude da consciência que o contempla, da atitude simbólica do indivíduo. O símbolo tem o poder de operacionalizar a participação do inconsciente na consciência, o que possui um efeito gerador de vida.
O símbolo vivo formula um fator essencialmente inconsciente e, quanto mais difundido esse fator, tanto mais geral o efeito do símbolo, pois faz vibrar em cada um a corda a fim. Uma vez que o símbolo, de um lado, é a melhor expressão possível e insuperável do que ainda é desconhecido para determinada época, deve provir do que existe de mais diferenciado e complexo na atmosfera espiritual daquele tempo. (Jung, 1991, p.446).
Existem fatores no psiquismo que ultrapassam a simples experiência individual, isto é existem certas constantes que não são adquiridas individualmente – meras idiossincrasias – mas existem “a priori”, trata-se, como já foi explicado, não de idéias herdadas (algo que Freud defende no seu Esboço de Psicanálise), mas sim de uma determinação pré-natal de modos de comportamento e funções, que são iguais no mundo todo, ou seja, maneiras de pensar, sentir e imaginar que independem de tradição ou cultura, que provêm dessa base instintiva. Experimentalmente isso se comprova no material empírico proveniente dos sonhos, fantasias, alucinações e, sobremaneira, na comparação dos mitologemas. “Os mitologemas são as ‘partes do universo’ há pouco mencionadas, que estão estruturalmente compreendidas na psique. Representam tais constantes que, em todo o tempo e lugar, se exprimem de maneira relativamente idêntica” (Jung, 1981). A relação desses fatos com a psicoterapia se deve a razão, que hoje deveria ser óbvia, de que tais distúrbios estão relacionados aos distúrbios dos instintos, esses instintos, no homem, estão estreitamente relacionados a imagens e situações típicas – convém recordar que para Jung, o inconsciente coletivo e formado pelo par funcional arquétipo/instinto – os conteúdos coletivos expressos nos mitologemas representam as imagens de situações que estão intimamente associadas a liberação dos impulsos instintivos, eis a razão de seu conhecimento ser da maior importância prática ao psicoterapeuta. Deve-se ter em mente, que a psicologia leva em conta de maneira séria a antinomia entre pessoal/coletivo, todavia é preciso recordar sempre que “a alma é um todo, onde tudo depende de tudo”. A alma depende do mundo e sem ele não pode jamais almejar encontrar respostas satisfatórias as dores e sofrimentos anímicos.
Seguindo adiante, ainda há muitos autores a serem visitados nesse esforço de compreensão. O próprio Campbell, em seu livro O Herói de Mil Faces, resume algumas das posturas possíveis acerca da mitologia, além de indicar alguns dos autores de maior importância.
A mitologia tem sido interpretada pelo intelecto moderno como um primitivo e desastrado esforço para explicar o mundo da natureza (Frazer); como um produto da fantasia poética das épocas pré-históricas, mal compreendido pelas sucessivas gerações (Müller); como um repositório de instruções alegóricas, destinadas a adaptar o indivíduo ao seu grupo (Durkheim); como sonho grupai, sintomático dos impulsos arquetípicos existentes no interior das camadas profundas da psique humana (Jung); como veículo tradicional das mais profundas percepções metafísicas do homem (Coomaraswamy); e como a Revelação de Deus aos Seus filhos (a Igreja). A mitologia é tudo isso. Os vários julgamentos são determinados pelo ponto de vista dos juízes. Pois, a mitologia, quando submetida a um escrutínio que considere não o que é, mas o modo como funciona, o modo pelo qual serviu à humanidade no passado e pode servir hoje, revela-se tão sensível quanto a própria vida às obsessões e exigências do indivíduo, da raça e da época. (Campbell, 2004, p.367).
Para Campbell, em certa medida, não é inteiramente possível existir uma definição definitiva da mitologia, seu estudo enfrenta as mesmas dificuldades daqueles que tentavam aprisionar o deus Proteus, capaz de assumir mil formas. Jung assume postura similar no que concerne ao estudo do psiquismo, o que, certamente inclui os mitos, de nenhuma teoria pode explicar tudo, a psique, por sua própria natureza, sempre guardará mistérios insondáveis a nossa compreensão, e essa mesma natureza leva a existência de inúmeras teorias para dar conta de seus muitos aspectos.
Os mitos desempenham funções na sociedade e no próprio indivíduo, como já citei en passant, essas quatro funções são: a mística, a cosmológica, a sociológica e a psicológica. A função mística nos apresenta o sentido de assombro e mistério diante do universo e da própria existência. Isso significa harmonizar a consciência com as precondições de sua própria existência, ou dito ainda de outro modo alinhar a consciência ao mysterium tremendum do universo, exatamente como ele é. O mundo em que vivemos é, para consciências mais sensíveis, um lugar nada agradável, pois vida se alimenta de vida. Pense por um instante em todas as pizzas e sanduíches que você já comeu, para ter prazer com seu paladar e, fundamentalmente, continuar vivo, pois bem, cada um desses momentos, representa uma enorme mortandade de outros seres, que sangram e sofrem, para que você continue vivo. Todas essas experiências soam distantes e quase surreais para nós homens modernos e civilizados, mas passe próximo a um matadouro e você sentirá o cheiro da realidade da vida, pois vida e morte, contentamento e horror, prazer e sofrimento, caminham sempre de mãos dadas. Essa constatação leva a existência de três possibilidades de ordens míticas, que engendram sociedades completamente diversas entre si. Uma afirma o mundo como ele é, a segunda o nega como ele é e, por fim, restaurando o mundo ao que ele deveria ter sido. Exteriorizando, interiorizando ou efetuando uma correção.
A segunda função, cosmológica, é a de apresentar uma “imagem consistente da ordem do universo”. Essa imagem consistente da ordem do universo é o que vemos nascer talvez entre os sumérios, que observaram as estrelas, e os grandes e pequenos ciclos cósmicos, desde os mais evidentes: a passagem do dia para a noite, a mudança das estações, as cheias periódicas dos rios, a lua e suas várias faces no céu, e as marés. Até os mais complexos cálculos astronômicos relacionados às constelações entre outros. Essa imagem se traduz em números, a ordem matemática do cosmos, algo tão grandioso e impessoal que mesmo deuses e imortais estão igualmente subjugados a ela.
A função sociológica é aquela pela qual um mito sustenta e dá validade a uma ordem social e moral. Muitos crêem que essa função foi tomada da mitologia, isso é verdadeiro apenas em parte, basta escutar a extrema direita americana, as discussões sobre homossexualismo, aborto, liberação feminina para percebermos o quanto o mito ainda é influente. Um exemplo ainda mais grandiloqüente são as sociedade islâmicas, muitas das quais ainda utilizam como legislação a sharia, a lei sagrada do islã. Ou a bela e pacífica sociedade tibetana anterior a invasão chinesa, exemplos de sociedades onde todo o fundamento de sua moral e sociedade se apóiam em fundamentos míticos.
A quarta função, psicológica, é a que expressa o poder mais extraordinário do mito vivo em minha opinião.
A quarta função da mitologia tradicional é conduzir o indivíduo através dos vários estágios e crises da vida, isto é, ajudar as pessoas a compreender o desdobramento da vida com integridade. Essa integridade supõe que os indivíduos experimentarão eventos significativos a partir do nascimento, passando pelo meio da existência até a morte em harmonia, primeiramente com eles mesmos, em segundo lugar com sua cultura, em terceiro lugar com o universo e, finalmente, com aquele mysterium tremendum que transcende a eles próprios e a todas as coisas. (Campbell, 2002, p.34).
Termino por aqui, o tema está longe de ser esgotado, e ainda poderia escrever bem mais sobre os dois autores. Por hora esse texto permanece como esboço de um projeto maior que venho postergando há alguns anos, bem, não sei ainda quanto tempo levarei para concluir o meu intento, mas por hora me dou por satisfeito. Aos poucos irei concluindo e veremos o que farei com ele quando terminar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário