Esse texto foi escrito há cerca de dois anos, creio eu, durante o meu mestrado, especificamente para uma disciplina que, a época, era ministrada pelo meu orientador. Foi escrito por mim e por meu dileto amigo e parceiro de estudos Filipe Jesuíno. Meu estilo, desde então, mudou bastante, ou talvez, tenha se tornado mais "meu" e menos influenciado por outrem. O texto, todavia, já deixa antever, um pouco da maneira como prefiro escrever hoje, e contém uma pesquisa interessante de cunho epistêmico, por isso, o publico aqui. Do texto completo só omito as referências, não fiz qualquer alteração, logo, certas informações são "datadas", mas importa mais o próprio texto:
A Realidade Psíquica[1]
Heráclito Aragão Pinheiro
Licenciado em História pela UFC, mestre em Psicologia pela UFC.
Filipe de Menezes Jesuíno
Psicólogo e Mestre em Psicologia em UFC, Professor Assistente de Psicologia da UFC.
Uma vez, ao pôr do sol, Zhuangzi cochilava debaixo de uma árvore quando sonhou que havia se transformado numa borboleta. [...] E ficou confuso: era essa a magnífica borboleta que Zhuangzi havia sonhado, ou era essa borboleta que havia sonhado ser Zhuangzi? Talvez Zhuangzi fosse a borboleta! Ou talvez a borboleta fosse Zhuangzi? É esse o resultado da transformação das coisas.
(CAPPARELLI, 2007, p83)
O sonho do sábio chinês Zhuangzi, narrado acima, nos remete a uma pergunta, que apesar de freqüentemente sonegada, revela-se crucial para o estudo da alma[2]: o que é real? Jung respondeu a esta pergunta de maneira sucinta e elegante “aquilo que age, que atua, é real”. (JUNG, 1971, §742). Tal simplicidade, todavia, esconde sutilmente uma elaborada discussão epistemológica, um dos esteios fundamentais da teoria junguiana e de sua prática clínica, que entre si são inextrincáveis, e que justifica a escolha do mestre suíço por esta resposta tão singular para a questão que já atormentava Zhuangzi.
A resposta a esse questionamento é essencial para justificar epistemologicamente uma psicologia científica genuína e não algo que – para utilizar a expressão de Canguilhem – não passaria de “uma mistura de uma filosofia sem rigor, de uma ética sem exigências e de uma medicina sem controle”. (PENA, 1991, p.33). Entretanto, das numerosas e sérias objeções à cientificidade da psicologia, interessar-nos-á, de perto, o que asseverou Kant. Uma de suas principais objeções foi a de que não existiria uma psicologia matemática possível no sentido em que existe uma física matemática (p.37). Além disso, não seria possível uma psicologia experimental, como a química, pois não poderíamos efetuar experimentos sobre nós mesmos ou sobre os outros, isso só levaria à alienação. “Na perspectiva Kantiana, o eu, sujeito de todo julgamento, é uma função de organização da experiência mas do qual não pode haver uma ciência, de vez que ele é a condição de toda ciência”. (PENA, 1991, p.36).
Podemos resumir a objeção Kantiana a uma ciência do espírito em poucas palavras: tal ciência carece de objetividade! É curioso notar que as duas principais influências, ou, melhor dizendo, os principais pressupostos filosóficos de Jung, para a formulação de sua ciência, são justamente o romantismo alemão, e, a filosofia Kantiana. Jung não nega a objeção Kantiana, nem mesmo tenta desqualificá-la através de algum artifício lógico, mas, paradoxalmente, assume-a como uma das principais dificuldades epistemológicas e metodológicas enfrentadas pela psicologia moderna.
Parece-me, às vezes, que a psicologia ainda não compreendeu nem a proporção gigantesca de sua missão, nem a complexidade e desanimadora complicação da natureza de seu tema central: a própria psique. É como se mal estivéssemos acordando para essa realidade, com a madrugada ainda muito obscura para compreendermos perfeitamente o porquê da psique, constituindo-se no objeto da observação e do julgamento científicos, ser ao mesmo tempo o seu sujeito. A ameaça de um círculo tão espetacularmente vicioso tem-me levado a um extremo de relativismo e cuidado, quase sempre incompreendido. (JUNG, 1985, §6).
Em sua obra, Jung realiza um imenso esforço epistemológico para encontrar a tal objetividade negada por Kant, e que se liga à pergunta que serve de mote a esta discussão: o que é real?
A influência de Kant em Jung se faz sentir em uma de suas mais sábias escolhas metodológicas, a negação da metafísica, entendida por Jung como hipóstase dos conceitos. Tal negação não é, de modo algum, uma desqualificação, mas um crivo metodológico. Jung se entendeu cientista, e sua ciência da alma se interessa pelo símbolo[3] enquanto objeto de estudo privilegiado. As produções metafísicas, entendidas como simbólicas, são passíveis de estudo e discussão e não podem ser negligenciadas. O psicólogo, entretanto, não pode se valer, no desenvolvimento de sua teoria, de postulados metafísicos. Observamos esse crivo precisamente aplicado diante da resposta junguiana para a pergunta pela existência ou não de um Ser Supremo.
O conceito de Deus é simplesmente uma função psicológica necessária, de natureza irracional, que absolutamente nada tem de ver com a questão da existência de Deus. O intelecto humano jamais encontrará uma resposta para esta questão. Muito menos pode haver qualquer prova da existência de Deus, o que, aliás, é supérfluo. A idéia de um ser todo-poderoso, divino, existe em toda parte. Quando não é consciente, é inconsciente, porque seu fundamento é arquetípico. (JUNG, 1987, §110).
Ou ainda, em outra passagem:
A figura de Deus é essencialmente uma imagem psíquica, um complexo de representações de natureza arquetípica, que a fé considera idêntico a um ens metafísico. A ciência não tem competência para julgar essa colocação. Ao contrário, ela precisa procurar sua explicação sem esta hipóstase. (JUNG, 1995, §95).
Tal crivo metodológico serve de indicação para entendermos a fundamentação epistemológica da realidade psíquica em Jung e para entendermos sua definição daquilo que é real. Outro problema herdado da tradição Kantiana também figura entre os pressupostos fundamentais de Jung, e se revela crucial para nosso entendimento. Trata-se da separação Kantiana entre númeno e fenômeno. Kant, em sua radical rejeição da noção tradicional de metafísica, nega a assim chamada intuição intelectual que nos daria acesso imediato a essência das coisas. Por definição, essas essências (ούσία) são o incondicionado, conhecê-lo diretamente seria justamente entrar em contato com essas essências, o que dessa forma, deixaria de ser incondicionado. Para Kant a intuição é sempre sensível, é o modo como os objetos se apresentam a nós no espaço e no tempo (precisamente as condições de possibilidade do sensível) o que podemos conhecer não é o “real” (das Ding an sich), mas sempre o real em relação com o sujeito do conhecimento. Distingue-se, assim, o mundo dos fenômenos – a realidade que experimentamos – do númeno, entendido como realidade em si mesma, a qual, apesar de podermos pensar, não podemos jamais conhecer. Daí sua famosa epistemologização da filosofia, e sua mudança do termo transcendente para transcendental, entendemos também sua famosa metáfora, presente no prefácio da segunda edição (1787) da Critica da Razão Pura, sobre sua revolução copernicana. Pois, diferente do que advogava a tradição filosófica até então (que o sujeito se orienta pelo objeto), Kant irá opor a concepção de que o objeto é determinado pelo sujeito[4].
Kant formula suas concepções em resposta as críticas céticas dos empiristas, especialmente a Hume, pois Kant afirma que os questionamentos de Hume o levaram a “despertar de seu sono dogmático”
Desde as tentativas de Locke e Leibniz, ou, mais ainda, desde a criação da metafísica, por mais longe que remonte a sua história, não houve acontecimento algum que fosse mais decisivo em relação ao destino dessa ciência do que ofensiva levada a efeito por David Hume contra ela. Ele não trouxe luz a esta espécie de conhecimento, mas despertou uma centelha, na qual se poderia ter acendido uma luz, se ele tivesse encontrado uma mecha inflamável, cujo ardor fosse cuidadosamente mantido e aumentado. (KANT, 1980, p.8)
Jung assume essa divisão fundamental, porém sua circunscrição desse fenômeno basilar se dá não em termos filosóficos, mas nos termos próprios de uma psicologia científica.
Percebemos apenas as imagens que são transmitidas indiretamente, através de um aparato nervoso complicado. Entre os terminais nervosos dos órgãos dos sentidos e a imagem que aparece na consciência se intercala um processo inconsciente que transforma o fato físico da luz, por ex., em uma “luz”-imagem. Sem este complicado processo inconsciente de transformação, a consciência é incapaz de perceber qualquer coisa material. (JUNG, 1986, §746).
Começa a se abrir a senda de compreensão para a singela frase de Jung que citamos logo de início, resposta simples e elegante “É real aquilo que atua”. (JUNG, 2000a, §353). Tal simplicidade, que se pode repetir simplesmente como jargão fácil, esconde os meandros dessa complexa teia de articulações epistêmicas, dédalo em que procuramos divisar o fio de Ariadne que nos leva de volta, após essa descida necessária as bases epistemológicas de Jung, verdadeira χατάβαση, contemplar uma vez mais a simplicidade e elegância de Jung com novos olhos. Em termos metodológicos, o inconsciente é tratado de maneira idêntica à “realidade externa”.
A consciência é como uma superfície ou película cobrindo a vasta área inconsciente, cuja extensão é desconhecida. Ignoramos a extensão do domínio do inconsciente pela simples razão de desconhecermos tudo a seu respeito. Não se pode dizer coisa alguma a respeito daquilo que nada se sabe... Quando dizemos “inconsciente” o que queremos sugerir é uma idéia a respeito de alguma coisa, mas o que conseguimos é apenas exprimir nossa ignorância a respeito de sua natureza... (JUNG, 1986, §746).
Perceba-se que há uma recusa persistente em se tratar da natureza do inconsciente. Mais adiante, nesse mesmo texto Jung alerta que tudo o que se fala a cerca do inconsciente trata-se, na realidade, de um “como se” (JUNG, 1986), condição metodológica crucial para se entender toda a sua obra. O que isso significa? Pensemos nessa delimitação metodológica no que concerne ao inconsciente, para facilitar, ao menos em parte, nossa compreensão. Tudo o que sabemos do Inconsciente é aquilo que nos chega à consciência. Em primeiro plano está a consciência, somente depois é que tratamos dos produtos da chamada alma inconsciente (de cuja natureza última nada sabemos, nem jamais saberemos) que se manifestam na consciência, mas que percebemos que não foram produzidos por ela, e que, em grande parte dos casos, se comportam com notável autonomia frente ao eu e parecem ser imunes a volição consciente. Não são, portanto, produtos arbitrários, mas formações autônomas alhures à consciência do eu. E que, como não sabemos de onde vem, e como chegamos à constatação de que não são produtos do arbítrio do eu, postulamos um inconsciente, que é, por definição, incognoscível.
Logo, estamos diante, de algo que poderíamos chamar, em um primeiro momento, de “duas” realidades, ambas, fundamentalmente, incognoscíveis. Ou seja, que não nos são imediatamente acessíveis, das quais não temos experiência direta, nem podemos almejar ter[5].
Teoricamente, é impossível dizer até onde vão os limites do campo da consciência , porque este pode estender-se de modo indeterminado. Empiricamente, porém, ele alcança sempre o seu limite, todas as vezes que toca no âmbito do desconhecido. Este desconhecido é constituído por tudo quanto ignoramos, por tudo aquilo que não possui qualquer relação com o eu enquanto centro da consciência. O desconhecido se divide em dois grupos: o concernente aos fatos exteriores que podemos atingir por meio dos sentidos, e o que concerne ao mundo interior que pode ser objeto de nossa experiência imediata. O primeiro grupo representa o desconhecido do mundo ambiente, e o segundo, o desconhecido do mundo interior. Chamamos de inconsciente a esse último campo. (JUNG, 1988, §2).
O eu vive entre dois grandes desconhecidos, o mundo exterior, e o mundo interior, que não lhe são imediatamente acessíveis e, em sua natureza última, são incognoscíveis. Mas em que mundo então vive o eu? Para Jung a resposta a essa pergunta é fundamental para o estudo da alma e para o estabelecimento do que ele chama de método empírico/fenomenológico. (JUNG, 1978). Lembremos, com referência à nossa discussão acerca das distinções Kantianas, que Kant elabora a sua crítica em resposta aos empiristas, discordando fundamentalmente das concepções de Hume (mas levando muito a sério suas críticas). Kant, que é um pressuposto epistemológico fundamental para Jung, se opõe à empiria. Como então Jung se declara empirista?
Devemos evitar sermos confundidos pelos termos, assim não compramos gato por lebre. A tradição empirista, que se desenvolveu prioritariamente no mundo anglo-saxão, e que tem seus inícios modernos com Bacon, mas que pode alegar antiguidade o bastante para possuir entre seus ancestrais alguém do quilate de um Aristóteles, possui como mote fundamental a célebre frase Nihil est in intellectu quod non antea fuerit in sensu. Sobre essa tradição Jung tece o seguinte comentário: “sob este aspecto, é 'real' tudo o que provém ou pelo menos parece provir direta ou indiretamente do mundo revelado pelos sentidos”. (1986, §742). Bem entendido, essa tradição empirista, possui certas características que divergem fundamentalmente da visão que Jung possui de realidade. Os empiristas, de um modo geral, rejeitam qualquer noção de idéias inatas ou de um conhecimento anterior à experiência ou independente desta. Rejeitam também quaisquer especulações metafísicas. Somente a experiência seria critério de validade, experiência esta entendida como experiência sensorial. Locke chega mesmo a propor a tese da mente como “tabula rasa”, que é marcada pela experiência.
Isso eleva a um conceito de realidade por demais estreito para podermos acreditar que Jung é um empirista desse tipo. Não obstante, vejamos o que Jung entende por experiência: “Creio, de fato, que não há experiência possível sem uma consideração reflexiva, porque a 'experiência' constitui um processo de assimilação, sem o qual não há compreensão alguma”. (1978, §2). Isso se deve a conceituação de Jung de realidade psíquica.
(...) aquilo que nos parece como uma realidade imediata consiste em imagens cuidadosamente elaboradas e que, por conseguinte, nós só vivemos diretamente em mundo de imagens. (JUNG, 1986, §746).
Vivemos, portanto, num mundo de elaboradas representações psíquicas, e não temos nenhum acesso direto ao mundo dito “material”, ou àquilo que chamamos de inconsciente. Sendo, ambos, incognoscíveis. A única realidade imediata é a realidade da alma, sendo esta a única a que temos acesso direto.
Longe, portanto, de ser um mundo material, esta realidade é um mundo psíquico, que só nos permite tirar conclusões indiretas e hipotéticas a cerca da verdadeira natureza da matéria. Só o psíquico possui uma realidade imediata, que abrange todas as formas do psíquico, inclusive as idéias e os pensamentos “irreais”, que não se referem a nada “exterior”. Podemos chamá-las de imaginação ou ilusão; isto não lhes tira nada de sua realidade. (...) Nossa tão decantada razão e nossa vontade desmedidamente superestimada às vezes são impotentes diante do pensamento “irreal”. (JUNG, 1986, §747).
A tentativa de derivar a alma do mundo físico, entendendo-a como mero epifenômeno da matéria ou de alguma secreção cerebral, ou de algum fenômeno bio-elétrico, esses sim vistos como “reais”, revelam a existência daquilo que Jung, acertadamente, chama de metafísica da matéria. Ora, tais fenômenos, aos quais nosso atual Zeitgeist dá mais crédito – o que demonstra uma preferência sentimental pelas explicações que se baseiam na “matéria”, seja ela entendida como um quimismo, um impulso eletro-químico, ou alguma região de uma topologia anatômica do cérebro – resvala no erro metodológico, ex exposistis, de apelar para um julgamento metafísico. A “matéria” é algo incognoscível, crer que dela se pode saber mais do que da alma, ou querer, de modo apressado, derivar uma da outra, não passa de especulação metafísica, com escasso valor científico, mas que alcança aplauso geral, devido à inclinação sentimental que desvaloriza a alma e coloca tal “matéria” como princípio primeiro, de cuja essência, esquece-se, nada se sabe. Desta forma, nesses argumentos, a noção de matéria encontra-se hipostasiada.
(...) se em nossos dias alguém sustentar que os fenômenos intelectuais e psíquicos se devem à atividade glandular, pode estar certo de que terá o aplauso e a veneração de seu auditório, ao passo que, se um outro pretendesse explicar o processo de decomposição atômica da matéria estelar como sendo uma emanação do espírito criador do mundo, este mesmo público simplesmente deploraria a anomalia intelectual do conferencista. E, no entanto, ambas as explicações são igualmente lógicas, igualmente metafísicas, igualmente arbitrárias e igualmente simbólicas. (JUNG, 1986, §652).
Sabemos como Jung entende a experiência, pelo já exposto. Logo, para ele, os dados da alma, sendo esta a nossa realidade imediata, são passíveis de um conhecimento empírico. Na realidade, todos os dados empíricos a que temos acesso, são mediados pela alma, logo, toda empiria passa pela realidade da alma. É nesse sentido, com um fundamento Kantiano, que Jung se diz empirista.
Aquilo de que trata a psicologia, é a única realidade imediata a que temos acesso. Um sonho, um devaneio, uma idéia obsessiva, são fatos reais. Que podem inclusive solapar a hierarquia dos complexos e colocar o complexo do eu de joelhos diante de sua autonomia e poder frente a consciência. “A idéia é psicologicamente verdadeira, na medida em que existe”.
Trata-se de um ponto de vista exclusivamente científico, isto é, tem como objetos certos fatos e dados da experiência. Em resumo: trata-se de acontecimentos concretos. Sua verdade é um fato e não uma apreciação. (JUNG, 1978, §4).
Mesmo a mais absurda e estapafúrdia das idéias, ou a ilusão mais empedernida, pode ser causa de profundo sofrimento, e se apresentarem invencíveis diante da consciência. Por mais que se diga a uma histérica, com toda a boa vontade e da maneira mais razoável, que seu corpo não apresenta nada de errado, que nada físico a aflige e por mais que ela seja capaz de compreender e, até mesmo, aceitar esse fato racionalmente, dificilmente esse sermão racionalista bastaria por si só para curá-la de seu sofrimento, pois “é real aquilo que atua”.
O inconsciente é tudo aquilo que sabemos ser psiquicamente real, mas que não é consciente. Trata-se de um conceito limítrofe, e negativo. Usamos esse conceito negativo para evitar um preconceito. Alguns o chamam de supraconsciente, outros de subconsciente, outros ainda falam de esfera divina ou base existencial. Nomes há aos milhares. Preferimos o termo inconsciente justamente porque não diz nada. Diz apenas que não é consciente, o que permanece um mistério. Não sabemos o que é. Sabemos apenas que há fenômenos psíquicos que se manifestam através de sonhos, gestos involuntários, lapsos da fala, alucinações ou fantasias que não são conscientes. (FRANZ & BOA, 1997, p.37).
Começamos essa breve explanação com uma história chinesa, pois bem, terminemos com outra, que expressa magnificamente aquilo que é o coração do problema que tentamos abordar, com mais precisão e beleza do que esse texto jamais poderia sonhar em expressar.
Um lenhador de Zheng viu um veado no campo e o matou com um tiro. Com medo de ser pego, ele escondeu o veado sob folhas de bananeira. E foi embora contente.
Pouco depois, ele se esqueceu do lugar onde tinha escondido o veado e pensou que o episódio tivesse sido um sonho. A caminho de casa, começou a conversar sozinho, falando alto sobre esse sonho. Quando falou mais uma vez, um carroceiro que vinha passando escutou suas palavras e imaginou onde o veado podia estar escondido. Logo encontrou o veado e o levou para casa.
Esse carroceiro falou para a sua mulher:
- O lenhador sonhou que tinha matado um veado e havia esquecido o lugar onde o tinha escondido. Eu então achei o veado. Nesse caso, o sonho deve ser verdadeiro.
Sua mulher disse:
-Existia de fato um lenhador? Ou você sonhou com um lenhador? Embora você tenha agora o veado, isso não significa que o sonho seja verdadeiro.
O carroceiro respondeu:
- Eu tenho o veado. Não me interessa qual dos sonhos é verdadeiro, o dele ou o meu, o veado é verdadeiro.
Acontece que o lenhador tinha ido para casa muito triste por ter perdido o veado.
Naquela noite ele teve um sonho. No seu sonho apareceu o carroceiro que o tinha escutado enquanto ele falava sozinho e que, no fim, havia encontrado o veado.
Na manhã seguinte, seguindo o seu sonho, ele achou esse homem e o veado. Levou então os dois ao juiz, esperando por uma sentença favorável, que possibilitasse a ele recuperar o veado.
O juiz disse:
-Primeiro o lenhador matou o veado, mas pensou que fosse um sonho. Depois ele sonhou que tinha matado o veado e acreditou que isso fosse real. Ele encontrou o carroceiro que vinha passando e pegou o veado real e, agora, acusa esse mesmo carroceiro, para recuperar seu veado. Como dizer que o carroceiro não pegou o veado do sonho de outro homem e sim do sonho do lenhador? Logo, o veado não é de ninguém. O veado está aqui e é real. Melhor dividí-lo entre os dois.
O juiz achou o caso muito difícil e apelou ao rei Zheng. Este, sorrindo, fez a seguinte observação:
-Bom, pelo jeito vão dizer que o juiz sonhou com a divisão do veado. Acho melhor esse caso ser levado ao conselheiro mor.
O rei Zhang mandou o caso para o conselheiro-mor. Não demorou muito e veio a resposta:
-Não sei dizer se esse caso é sobre sonho ou realidade. E apenas sábios como Huangdi e Confúcio podem diferenciar sonhos de realidade. Como os dois já morreram, recomendo que se siga a recomendação do juiz. (CAPPARELLI, 2007, p85).