sexta-feira, 4 de março de 2011

Hellboy





Hoje assisti pela milionésima vez Hellboy 2 – por sinal ótimo filme excelente direção de Guillermo del Toro e uma das melhores atuações de Ron Perlman – como ainda estou com insônia, mesmo depois de ter visto o filme, resolvi escrever sobre algo de que me recordei ao vê-lo.

Hellboy 2 estava prestes a estrear nos cinemas e eu estava numa aula de alemão falando sobre o personagem principal para o meu professor antes da aula começar propriamente – para os que não sabem o personagem principal é a besta da profecia do apocalipse, invocado prematuramente pelos nazistas e criado como filho de um bondoso cientista e agente de inteligência americano – uma garota entreouviu nossa conversa e fez um comentário, me recordo do seu nome, pois ela tinha o nome do Buda: Sidarta. Apesar do nome do príncipe indiano que abandonou o mundo para encontrar o caminho do meio, ela era protestante e casada com um pastor. Ao ouvir que o herói era um demônio, com chifres e tudo ela comentou “parece mais um jeito de fazer as pessoas gostarem do demônio”. Imediatamente retruquei que se tratava de uma metáfora, Hellboy lutava para transcender suas origens e se tornar a pessoa que ele gostaria de ser não a que estava destinado a ser pela ocasião de seu nascimento. Meu professor encerrou a conversa, incrédulo de que ela pudesse aceitar facilmente essa noção.




Hellboy é realmente um personagem fascinante, ele é como Pinóquio, tudo o que almeja é ser humano. O que remete a uma série de questionamentos dos mais interessantes sobre a condição humana. O que nos torna humanos? O fato de ter nascido como demônio o impede de ser humano ou são suas escolhas que determinam isso? Essas e muitas outras perguntas importantes deixam de ser feitas ou são esquecidas quando se olha para o filme ou para os quadrinhos de Mike Mignola e ao ver um demônio pensamos de maneira denotativa. “bem, se esse filme trata demônios como heróis só pode ser algo ruim”, perdendo-se a noção da metáfora o filme ou os quadrinhos se tornam opacos, eles perdem a qualidade de serem “transparentes ao transcendente”, para usar a expressão de Campbell.

Se é que existem realmente entidades metafísicas como anjos ou demônios, isso não importa muito, mas certamente os vivenciamos psicologicamente como partes de nossa personalidade, ou potenciais adormecidos em nós, que desconhecemos, essas figuras sombrias e estranhas surgem na nossa imaginação e sonhos como expressão criativa do espírito que tece nossos sonhos à noite, o “eu número dois” de que Jung fala em seu memórias, sonhos e reflexões, aquilo que em sua obra ele chamou de psique objetiva. Esses seres sobrenaturais só têm algo a nos dizer, algo que nos cala fundo a alma, quando os entendemos de maneira conotativa, como metáforas da condição humana, daquilo que é perene em nossa história não como indivíduos, mas como espécie.

Mitos e a arte criativa, como a de Mignola, estão repletos desses seres fantásticos por um motivo. Talvez existam realmente pessoas terrivelmente perturbadas que façam uso dessas metáforas no sentido aludido pela minha colega de alemão, mas quanto a isso só podemos lamentar. Pois esses “satanistas” incorreriam no mesmíssimo erro de minha colega, que é insistir na historicidade concreta dessas figuras. Em nossa sociedade, carente de mitos, o artista criativo assume o papel que antes foi do místico e do visionário que elaboravam as grandes tradições míticas. Campbell sempre fala de Mann e Joyce como aqueles que puderam lhe apresentar modelos válidos para sua vida em seus anos de formação. Se a miopia do radicalismo religioso nos privar até mesmo disso, então viveremos num mundo lamentável.

Nenhum comentário:

Postar um comentário