O
tempo é um dos conceitos mais importantes em História, temos muitas maneiras de
encará-lo, Braudel falava no tempo rápido dos acontecimentos e na longa duração
– um tempo quase geológico. Fala-se de múltiplas temporalidades, Michel de
Certeau ao comparar História e Psicanálise mostrava que o tempo da Psicanálise
se presentifica a todo instante, é um passado, mas igualmente um agora, Kant
explicava o tempo, e ele provavelmente estava correto, como um dado que
pertence ao sujeito e não objetivo, uma intuição a priori. Os marxistas falam de um tempo do relógio e da fábrica a
regular e marcar a vida da sociedade industrial. Einstein brilhantemente
demonstrou que o tempo, esse que consideramos objetivo e unificado, é
influenciado pela gravidade e pela velocidade. Em termos míticos, o tempo é
Cronos de curvo pensar, que devora os próprios filhos, é o crocodilo com um
relógio no estômago que tenta incessantemente devorar o capitão Gancho, é a
imagem que Krishna revela a Arjuna antes da batalha crucial contra seus
parentes, dele mesmo a devorara a todos os mortais, eles já estão mortos
Arjuna, apenas cumpra o seu darma. Para o budismo, o futuro não existe e o
passado é uma ilusão.
O
tempo, ao menos para mim, é um perpétuo enigma, desde que me recordo, tenho uma
enorme dificuldade em registrar o passar do tempo, mesmo em intervalos curtos. O
meu próprio passado sempre parece estar envolto em uma bruma cinzenta que o
esconde de mim, o torna impreciso e vago em termos de tempo, para piorar, minha
personalidade epimeteica tem uma infalível tendência a não fazer cálculos e
planos, tendo assim uma inclinação natural para viver o momento e não pensar no
futuro. Como não tenho inclinações para arrependimentos e amargura, minha falta
de interesse no futuro não me causa dissabores, apesar de me causar
transtornos.
Curiosamente
sou historiador, alguém que tem por dever de ofício ser profundamente
interessado no tempo, mas o que realmente me atrai é o que existe de eterno, as
invariantes da alma em suas múltiplas manifestações: os mitos. Talvez pela
minha intrínseca dificuldade em dar conta daquilo que é transitório, o meu
espírito se volta alegremente para o eterno, as grandes e imorredouras
narrativas que expressam as verdades eternas e inefáveis daquilo que é a nossa
realidade mais profunda, aquilo que nos conecta a todos os demais e nos recorda
sempre e de novo da maravilha e do horror de estar vivo.
Nos
últimos tempos, premido pela necessidade, mas muito a contragosto, tenho tido
de dar conta dos acontecimentos efêmeros, mas que formam a tecitura sutil da
nossa vida, desde dar conta de varrer a casa, até lidar com problemas
comerciais enfadonhos, a lançar notas na data correta (minha profunda admiração
pelas pessoas que se desincumbem dessa tarefa sem embaraços), atualizar meu
currículo, bater ponto... Se eu pudesse, viveria apenas nas alturas do espírito
eterno e imóvel, a contemplar a beleza daquilo que nossa raça de macacos
pelados beligerantes e sensuais produziu de mais elevado: nossa filosofia,
arte, mitologia. Porém, como ensinou Confúcio, o homem que se afasta demais da
natureza e se apropria apenas da cultura não se torna um sábio, mas um pedante.
No frigir dos ovos, pode parecer ao observador incauto que sou um homem
profundamente espiritualizado, interessado nas intrincadas ideias do budismo
mahayana sobre a natureza da realidade, praticante de yoga e Zen budismo,
estudioso de culturas exóticas e da alma humana, mas ledo engano! Não, não o
sou, nossos estereótipos e niveladores sociais nos impedem de ver aquilo que
está diante de nossos narizes, isso tudo que resplandece como espiritual e belo
é justamente o que alheia de mim e do meu caminho espiritual, são descaminhos e
não caminhos. Faz muito tempo, perdoem-me não sei quanto, tive um sonho em que
eu era ordenado a lavar louças – coisa que detesto – há época eu já estudava
Jung (lá se vão 18 anos de estudos... Comecei em 2000, ano que entrei na
faculdade de história, disso eu lembro), e sabia da importância vital daquela
mensagem, mas falhei em segui-la, com consequências nefastas... Desde essa
época, porém, sei que meu caminho espiritual é algo tão banal e humilde quanto
varrer a minha casa, pagar minhas contas em dia, cozinhar, lançar notas e fazer
provas, todas essas banalidades que pessoas normais fazem num piscar de olhos e
que para mim são tão difíceis e penosas. Aí se encontra a minha alma e o meu
caminho, em meio ao pó e as coisas sem graça da vida, não na torre de marfim
dos filósofos e todas essas miudezas são regidas pelo tempo implacável, de
curvo pensar, e me consomem um tempo enorme apenas para engendrar em meu
espírito a gana necessária para agir.
Certamente
essa não é a melhor propaganda profissional que posso fazer de mim, mas
infelizmente do escritor é exigida essa sinceridade, não há nada pior do que um
escritor dissimulado, que usa as palavras para dissimular ao invés de desvelar.
Hoje, nesse instante, medito sobre o tempo, pois gostaria que ele retrocedesse,
ou passasse mais rápido, quisera a gravidade fosse maior, ou, ao menos, a minha
fortaleza interior fosse o bastante para suportar as agruras que o implacável
crocodilo traz a alguém tão miseravelmente despreparado como eu para lidar com
coisas bobas, mas de importância vital... Quase duas décadas estudando as
pessoas e como elas funcionam e ainda sou incapaz de agir algumas vezes,
paralisado por não mais querer intelectualizar a minha ação e não ter qualquer
outra ferramenta adequada para guiar o meu agir, neste tempo, me resta o
desamparo e perceber que por pior que seja, é dele que eu preciso.
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