Depois
do atentado que ocorreu na França, o Facebook nos dá a oportunidade de nos
solidarizarmos com as pessoas, vitimadas pela intolerância e o terrorismo,
colocando a bandeira tricolor na nossa foto de perfil. Nenhuma novidade,
fizemos isso com a bandeira do arco-íris e outros símbolos de movimentos
sociais e políticos em tempos de vitórias ou de catástrofe como essa.
Dessa
vez, há uma sutil diferença que me põe a matutar. Nos permitem colocar a
bandeira de um estado nacional em nosso perfil. Por certo, o atentado aconteceu
na França, mas essa demonstração de “nacionalismo” global em favor da terra dos
gauleses não nos passa uma mensagem insidiosa? Somos nós contra eles, numa
guerra em que a nossa nação, o nosso lado está ameaçado? Não estamos em guerra
contra o Islã, nem a França está. O islã é algo heterogêneo e imenso, variado e
em construção, reagindo sempre às guerras causadas pelo óleo e a destruição que
vem do ocidente. E a França? Com o que estou me solidarizando?
Só
conheço esse país pelo seu idioma e por livros, jamais estive lá. É a terra que
produziu, ao mesmo tempo, Rousseau e Napoleão, a mesma que gerou o grande
historiador judeu Marc Bloch e Robespierre, líder revolucionário no período do
terror da revolução francesa. A mesma França que foi derrotada pelos Nazistas e
que, simultaneamente, resistiu bravamente e capitulou de maneira vergonhosa com
o governo de Vichy, fantoche dos nazistas. Qual França? A mesma de Foucault e
Sartre, e que, por essa mesma época estava dividida e tensionada por diversas convulsões
sociais? Ou o país do conservador e nacionalista De Gaulle? Quem estou
apoiando? O governo francês? A população? Essa mesma constituída também de
inúmeros islâmicos, e de descendentes de suas ex-colônias? É preciso decidir,
ao menos para mim, o que essa bandeira representa.
A
França, ao menos a minha França, é povoada por grandes psiquiatras como Pinel,
Esquirol, Janet, Charcot, o famoso Hospital de Salpêtriére onde tanto Freud
quanto Jung estudaram. O nascedouro de grandes filosofias como as de Descartes,
Montaigne e tantas outras. O lugar onde a grande revolução da historiografia
surgiu com os Annales, onde despontaram nomes de vulto para a Historia, como
Jacques Le Goff e Braudel. Ao mesmo tempo é o lar dos três mosqueteiros, de
poetas tal qual Baudelaire e pintores, Gustave Moreau, por exemplo, cujas obras
me encantam. Essa França é à prova de balas, não precisa da minha
solidariedade. Temo, entretanto, que se queira crer que é essa a nação que está
ameaçada, que um vasto território da minha pátria espiritual está em perigo. Se
assim for, colocar essa bandeira no meu rosto significa a admissão de uma
guerra entre culturas, uma defesa dos ideais iluministas e humanistas contra a
barbárie. Esse não é o caso, os bárbaros não estão batendo à porta da Europa,
basta lembrar-se de Auschwitz para saber que a barbárie já dilacera, de dentro,
esse continente desde há muito tempo.
Tenho
profunda solidariedade para com todas as vítimas desse ato inominável. Admiro
as muitas Franças que existem hoje, com seu glorioso (e, ao mesmo tempo, não
tão glorioso) passado, incluindo a nação que habita apenas o meu espírito (pois
ajudou a formá-lo), mas eu passo a oportunidade de expressar isso com a
bandeira tricolor, que carrega tanto da simbologia da revolução. Detesto impor
regras ou normas, e não acho errado exprimir essa indignação por meio da
bandeira. Só penso que uma boa parte da França hoje, que também é representada
por essa bandeira, que carrega tanta história, também é islâmica, e pode ser
que essa atitude os exclua. Pode ser que meu ato signifique defender uma França
“verdadeira”, ou “pura” que nunca existiu, pois da mistura de gauleses, celtas,
romanos e tantos outros povos e culturas surgiu essa que agora abraça tantas
outras.
Perdoe-me
esse mau hábito de refletir sobre detalhes tão bobos, pode ser que eu esteja
simplesmente exagerando, mas, ao menos, essa é a justificativa para o meu ato
de não aderir a esse gesto. Acredito que muitos estejam imbuídos dos mais
nobres sentimentos ao fazê-lo, mas meus mais nobres sentimentos estão em minhas
reflexões. Creio que esses detalhes nos ajudam a ver melhor a nossa cultura.
Nenhum gesto é inocente, ou desprovido de significado, seja ele consciente ou
inconsciente.
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