Nós
somos uma nação dividida, fraturada em muitos pedaços, em um quebra-cabeça
muito difícil de solucionar. Nós olhamos para fora com admiração e espanto,
atentos a tudo o que há de melhor no mundo que nos cerca, principalmente se
isso mostrar, em contraste, tudo aquilo que temos de pior. Quando olhamos para
nós mesmos, como que no reverso do conto de fadas, perguntamos ao espelho “quem
é mais feio do que eu?”. Tudo é motivo de ressentimento, estamos sempre prontos
a destilar ódio. No sul odeiam os nordestinos, em toda a parte se odeiam os
negros, os gays, a mulheres e o governo. Incapazes que somos de nos reconhecer
nesse espelho mágico às avessas, vemos, sem o saber, fragmentos de nós mesmos
espalhados ao nosso redor, e os odiamos. A classe média se ressente de que o
governo ajude aos mais pobres, sem se dar conta de que vivemos em uma mesma nação,
sob as mesmas leis e o mesmo governo e, se o meu irmão passa fome, isso é
problema meu. Se os direitos civis de alguém no norte do país são violados, os
meus direitos estão em risco. Se uma jovem mãe não pode pagar os remédios de
seu bebê, a minha vida se torna mais triste. Em nosso espelho despedaçado, esse
idêntico à fábula de Andersen, o espelho do diabo, um pequeno fragmento de
vidro amaldiçoado entrou em cada um de nossos olhos e nos faz ver sempre o pior,
e, assim como no conto, um espectro gelado se apossou de nossos corações e nos
impede de sentir compaixão por nossos irmãos.
Os
cearenses não são meus compatriotas, que morram, menos bocas para alimentar. O homossexual
que é assassinado teve o que mereceu, afinal ele escolheu ser diferente, não é?
A garra gelada desse espectro que comprime nosso peito nos impede de ver
naqueles que são diferentes de mim aquilo que me complementa e que, se não
respeito ssa diferença, coloco em risco mortal meus próprio direito a
individualidade. Mas em nossa estranha maldição, acreditamos em uma alteridade
absoluta, que despe de humanidade o outro, posso ter compaixão por cãezinhos de
rua, mas meninos de rua devem ser amarrados a postes. O segredo do feitiço
desse fragmento de espelho é que nem suspeitamos que ele está lá, nos fazendo
enxergar em preto e branco: eles e nós, sem mediações. O pior, algumas vezes, tão
cegos estamos, que vítima e algoz se confundem: o nordestino assume o discusso
xenófobo do sulista, o gay o discurso racista, o negro o discurso machista, o
pobre repete a fala do rico a quem importa apenas o lucro.
Nossa
automimagem em pedaços no impede de ver o quadro mais amplo, daquilo que nos
une ao invés do que nos separa. Nosso ódio e ressentimento não fomenta a
individualidade, mas o individualismo. Como o jogador político, crítico ferrenho
da copa que aceita sem pudores dinheiro para lucrar com a copa. Não há
contradição, afinal, é preciso levar vantagem. Qual a vantagem de alimentar um
nordestino faminto? Ou levar água e luz a quem nunca as teve? Todo brasileiro
adora apontar o dedo para o corrupto e os reconhece com presteza, pois nossos
corações gelados são antros de ladrões. Tão atroz é nosso individualismo
enregelado que acreditamos que se não votarmos estamos isentos de qualquer
culpa, como Pilatos, lavamos as mãos e seguimos nossas vidas, odiando a nossa
terra, sonhando com paraísos distantes, em terras mais evoluídas. E os que ficam?
Eles que se virem! Quem se importa? Por acaso sou eu o guardião de meu irmão? Nossas
respostas são respostas simples, impávidas diante daquele a quem nada pode ser
escondido. Que se atire a primeira pedra? Ora, eu atiro à primeira, a segunda,
a terceira e a décima, pois mato aos meus próprios pecados na adúltera que eu
apedrejo, ou na bruxa que eu espanco até a morte, pouco importando que não seja
bruxa, é mulher e isso já basta.
Brado
em alto e bom som que vivemos em uma ditadura, sem temer qualquer retaliação e
sem que isso não passe de basófia vazia, mas brado com coragem mesmo assim! E aponto
o dedo em riste na cara dos ditadores eleitos democraticamente, depois volto
pra casa, sem nenhum medo por mim ou pelos meus e me sinto grande e potente,
sem a minha coragem o que seria dessa república de bananas? O que fazer com os
bandidos? Que sejam todos mortos, desde que não sejam brancos, ricos e com
nomes nórdicos. Quanto aos mendigos? As esmolas que eu dou no sinal deveriam
bastar, por que o governo deve mimá-los ainda mais com esmola governamental? O que
eu ganho com isso?
E
seguimos despedaçados, até mesmo a quimera que nos unia caiu aos pedaços ao
sabor dos interesses da mídia em fazer e desfazer governantes. Nos ressentimos
até mesmo do futebol. Se antes ele já era para alguns o verdadeiro ópio do povo
agora é o diabo em pessoa! Tudo que nasce nessa terra que em se plantando tudo
dá é motivo de ódio e vergonha, até a invenção inglesa que se tornou algo tão
nosso, nem mesmo esse refirgério nos resta. Não somos mais o país do futebol,
mas o país da copa dos grandes desperdícios e elefantes brancos. E bradamos
indignados, sem nem mesmo suspeitar da maneira como essa república que odiamos
funciona. Detestamos o congresso, mas para que serve mesmo um congresso? Ah sim!
CPIs é para isso que serve!
Mas
a nossa situação é mesmo tão ruim assim? Talvez o meu fragmento do espelho do
diabo seja um pouco menor, ou quem sabe, por viver em uma terra muito quente a
dama do gelo tenha menos poder sobre o meu coração, ou quiçá eu seja apenas
tolo. Mas ainda vejo aquilo o que nos une. Mesmo sendo um país que odeia em
nome de fronteiras geográficas imaginárias, tivemos um presidente nordestino, não
me refiro ao rico e bonitão de Alagoas, mas um pobretão bem feinho e, segundo
muitos dizem, um analfabeto, e mais, um proletariado e sindicalista. Depois dele,
nessa terra de mulheres espancadas, mulheres objeto seminuas na TV e no
carnaval, de mulheres sem voz e nem vez, tivemos uma mulher na presidência. Alguns
me dirão “mas não vês!? Eis aí o problema, a raiz de todo o mal!”. Quando um
negro se elegeu presidente dos Estados Unidos da América, nos achamos lindo,
mas aqui, aqui isso só mostra a extensão do problema, do meu problema bem entendido. Se a nação tem algum problema, é
problema dela.
Há
gestos de ódio sim, muitos, mais do que eu gostaria, mas há também pequenos
milagres todos os dias. Existe ignorância em abundância, mas sei que há almas
que brilham mais forte do que a escuridão que as cercam. Há egoísmo, mas
existe, igualmente em nossa terra, aqueles que têm a coragem de lutar pelos
outros, até mesmo por aqueles que ainda nem nasceram sob esses céus. Minha nação
não é o país do futuro, mas o país que eu construo todos os dias, em que sou
sim o guardião do meu irmão, em que sei que a minha felicidade depende da
felicidade do meu próximo. Há, entre nós, o que pregam o ódio, mas temos também
amor em abundância, disso tenho certeza, ou as coisas já seriam bem piores. Não
há mudança sem dores, ou fáceis, e muitos são os desafios que esta terra nos impõe.
Sempre que eu escuto alguém dizer que pretende, o mais rápido possível, fugir
para uma terra distante, eu penso que é aqui que eu devo ficar, aqui na terra
que os meus ancestrais escolheram para chamar de lar é que estão os desafios
que a minha geração devem encarar, e não pretendo fugir, mesmo com o ódio, a
intolerância, o ressentimento. Eu acredito que vivemos um momento ímpar e o que
vai emergir dessa fogueira será determinado pela nossa coragem e nossas ações.
Nenhum comentário:
Postar um comentário