Eu
li os contos de Machado de Assis aos 14 anos, e sua escrita sempre me
maravilhou, mas eu já tinha lido, aos nove anos, toda a obra de Monteiro
Lobato, o Antigo Testamento e, como já lia – vorazmente – desde os 4 anos, já
acumulava aí dez anos de muitas leituras, algumas boas outras nem tanto, mas eu
lia de tudo. Machado de Assis possui um lugar especial em meu coração de leitor
compulsivo. Com os anos, depois dele, vieram Joyce, Thomas Mann, Goethe, Poe e
muitos outros, mas sempre li muito e, desde muito pequeno, tinha um excelente
vocabulário e a capacidade de compreender o significado das palavras que
desconhecia pelo contexto, o que, na quinta série, rendeu o surgimento da
“lenda urbana” de que eu lia o dicionário para decorar palavras, pois raramente
– ou nunca – desconhecia o significado de uma palavra, por mais abstrusa que
fosse. Na realidade, aos 4 anos, a primeira coisa que li sozinho foi uma
revista dupla do Tarzam, se fechar os olhos ainda consigo folheá-la em meu
espírito. Hoje em dia, já perto da meia idade, seria difícil contabilizar
quantos livros já li, mesmo contabilizar quantos já li e reli só esse ano.
Infelizmente,
sou uma exceção. A média de leitura dos brasileiros é de 1,7 livros por ano,
isso por vontade própria, sem contar os livros que ele é obrigado a ler pela
escola (ou, ao menos, ver o filme), na França essa cifra é de 20 livros por
ano. Diante desse contexto de profundo desinteresse pela leitura, me causa um
certo espanto o clamor indignado diante da tentativa de simplificação da obra
do nosso maior escritor. Por que, de repente, essa indignação toda? Todo esse
ódio no coração? Se somos, na média, um povo que não lê e que não dá bolas para
livros?
Creio
que, em parte, essa revolta toda se explica pelos nossos ressentimentos fanáticos,
essa iniciativa os alimenta, mostra como somos “vira-latas”, como tudo o que se
passa sob esse céu é ruim e mal orientado, e como desvirtuamos mesmo as coisas
mais belas (tenhamos as lido ou não). Outro ponto míope desse debate, é que uma
versão da obra não destrói ou macula para sempre a obra original, ela continua
lá, do mesmo jeitinho, simplesmente passa a existir uma versão simplificada. No
mundo anglo-saxão, existem versões simplificadas de clássicos muito extensos,
tenho duas, The Golden Bough, de
James Frazer, e The Decline of the West
(Der Untergang des Abendlandes) de
Oswald Spengler. Tratam-se de versões condensadas. Também tenho uma versão
menor e sem gravuras do famoso “Livro Vermelho” ou Liber Novus, de Jung. Todos me são muito úteis, e sempre que eu
desejar, posso adquirir e ler as versões completas.
É
interessante, para debater um tema que suscita tantos afetos, conhecer um pouco
de história. Quando Machado era vivo, os folhetins que escrevia e que lia desde
pequeno para sua mãe e as amigas dela, eram tidos na conta de coisa sem
seriedade. Não eram ocupação para homens sisudos, ou pessoas realmente cultas,
mais ou menos como vemos os folhetins televisivos hodiernamente. Felizmente,
isso não impediu Machado de os escrever, e de fazer isso em uma linguagem quase
coloquial para sua época, de se dirigir ao leitor (algo que sempre imito) entre
outros recursos de estilo inovadores. Fico pensando, cá com meus botões, o que
o velho Machado teria pensado dessa iniciativa, mas essa especulação deixo aos
especialistas em sua obra.
Agora
vem o meu pitaco, todavia. Em uma nação em que as pessoas não leem, ou, se o
fazem, fazem de maneira insuficiente, eu, homem erudito, que fala vários
idiomas e lê muito, não posso, senão, aplaudir a iniciativa. O problema, ao
contrário do que bradam por aí, não é simplesmente a escola pública, fui
professor por dez anos e, alunos da rede pública e privada, sem muita
diferença, leem mal e escrevem pior ainda. Na universidade a coisa é
periclitante, o número de analfabetos funcionais é imenso, talvez a vasta
maioria. Eu, como leitor contumaz que sou, acho que nossos jovens devem ler de
tudo, desde quadrinhos até bula de remédio. Me recordo, da reação dos meus
colegas, num dos mais caros e prestigiados colégios de Fortaleza, diante da
obra de Saramago, Memorial do Convento, obra que me deu bastante trabalho,
assim como, há anos venho tentando escapar do Dédalo que é Ulysses de Joyce (e
eu leio no original), mas eu não chegaria a essas obras sem a coleção Vagalume,
ou outras centenas de livros bobinhos que li pelo simples prazer de ler. Se
alguém quer fazer algo para tornar a leitura acessível eu aplaudo essa
iniciativa.
Ao
ver essas reações raivosas, puristas, eu sinto um pouco da nossa vocação
escravocrata, elitista no pior sentido. As mesmas pessoas que vejo apontar o
dedo, não as vejo fazer mais nada pela nossa educação, nadinha. Mas se
ressentem de ter seus poucos brios literários mexidos. Quando eu era meninote,
e estava no começo de minha graduação de veterinária, meu pai lecionava para um
curso de professoras do estado. Eram velhas senhoras, bastante cansadas, que
ensinavam sem ter graduação, e o estado lhes proporcionou um curso para terem
um diploma. Meu pai sempre foi um homem ocupado e, algumas vezes, me mandava
lecionar história em seu lugar, e eu ia. Essas velhas professoras ouviam com
muita dificuldade o meninote de linguajar rebuscado falar, e pouco
compreendiam, por mais que eu me esforçasse. E elas não tinham pudores de me
dizer justamente isso, que eu falava coisas interessantes e bonitas, mas que
eles mal compreendiam. Por essa época, vi meu pai ter uma conversa com um amigo
professor que também lecionava para essas senhoras, que as deplorava, como hoje
as pessoas deploram o “machado simplificado”, e ele dizia “é fácil simplesmente
criticar, o difícil e ajudá-las a chegar ao seu nível”. Essa foi uma das poucas
lições importantes que aprendi com o meu pai.
O
problema da leitura no Brasil não vai se resolver da noite para o dia, mesmo
alunos de boas e caras escolas não leem. J. K, Howling escreveu uma série de
livros que muita gente criticou, mas que transformou uma geração inteira em
leitores. Ler é um ato libertador, a palavra escrita é uma das mais poderosas
formas de magia que nossa espécie concebeu, sejamos, ao menos parcimoniosos,
leiamos Machado no original, mas deixemos que outros, não tão sabidos, possam
lê-lo e, quem sabe, possam vir a lê-lo no original, assim como eu li muitos de
meus autores favoritos traduzidos para o português antes de poder lê-los em suas línguas originais. Eu normalmente
detesto traduções, mas sei da importância delas para as pessoas que não podem,
por um motivo ou outro, ler Jung em alemão ou ler Dumas em francês.
Nenhum comentário:
Postar um comentário