terça-feira, 4 de junho de 2013

Novamente a escrita

Há pouco tempo meu hábito de ler tudo o que me cai às mãos teve consequências daninhas ao meu espírito, pois li dois escritos ruins que me puseram a pensar na seriedade que é a arte e o ofício de escrever e seus descaminhos. Um era apenas um texto pueril e incoerente, mas tão mal alinhavado que me causou espécie, o outro, mais grave era um livro, com pretensões científicas das mais elevadas, quase estratosféricas, que respirava um ar tão rarefeito que se diria asfixiante, esse era praticamente ilegível, esquizoide, sem qualquer valor literário ou científico, não passa de lamentável testemunho da ruína que era o espírito do infeliz que o escreveu. O primeiro me incomodou, o segundo me causou pena, não compaixão, mas pena, e se tratava de um suposto tratado de psicologia, e era obviamente a escrita de um alienado e ambos me puseram a refletir e me abalaram. Finalmente, dias depois leio um texto curto de Mia Couto, e por fim me coloco a deitar a pena ao papel para expressar os sentimentos que esses três textos me evocaram, o terceiro, de profundo enlevo, delicada e melíflua sabedoria, além de penetrante e arguta sensatez.
Eu devo tudo a escrita, foi o testemunho vivo de homens de há muito mortos que alterou para sempre o curso da minha vida. Aos nove anos foi Monteiro Lobato, e não seria quem sou sem seus livros e a semente que plantou em meu espírito e que até hoje frutifica a cada vez que me ponho a escrever, sem ele meu mundo seria mais cinzento, frio, e bem menos mágico, Lobato me ensinou que vivemos num mundo mágico desde que saibamos olhar para ele com os olhos de menino. Depois foi Tolkien, na minha mocidade, seus livros me sequestraram a um mundo de heroísmo, sabedoria e magia, e ao retornar a esse nosso mundinho que, por vezes, pode parecer não ter nada disso, trouxe comigo muito do que é a essência desse mundo que é o testemunho vivo e eloquente da alma de um gênio. Ainda moço, pois ao escrever essas linhas já sou homem feito e caminhando a passos rápidos para o outono de minha existência, ao convalescer de um procedimento médico, Joseph Campbell me recordou das lições de Lobato, e uma vez mais o mundo tornou-se transparente ao transcendente, suas palavras me mudaram para sempre, de maneira indelével e a minha maneira de ver o mundo. Pouco depois Jung me ensinou que quando mudamos nossa maneira de ver o mundo, mudamos o mundo, e por meio do mestre suíço uma parte de meu destino se revelou a mim. Mesmo separados pelo tempo e pelo espaço, a magia da escrita permitiu que esses homens extraordinários agissem sobre mim moldando o meu destino e me fazendo escutar com maior acuidade ao som de meu próprio espírito, que se derrama qual tinta sobre as páginas que escrevo.
A escrita é uma maneira de se esconder por trás de palavras e ao mesmo tempo ser desvelado por elas, cada palavra é o testemunho daquilo que somos, podemos ser ou nunca seremos. Ao escrever cada um entra num jogo de luz e sombra em que sempre acaba-se mostrando mais do que escondendo, e o segredo mais íntimo de quem somos vai para o mundo, vencendo todas as barreiras que nos limitam como seres de carne, tempo e espaço não são nada para as palavras. Cada um de nós se converte em logos ao escrever, e junto da imaterialidade das letras vai nossa carne e sangue, quem somos e quem fomos, nosso demônios e nossos anjos, quer saibamos disso ou não. E a maioria não sabe, e se mete a escrever e a imortalizar asneiras, ou a revelar, como que movidos por uma perversa mão invisível, todo negrume e confusão de seus corações. Não sei o que pensar, as vezes creio que a máxima budista de “não veja o mal, não fale o mal, não ouça o mal” pode estar certa, ao vermos o mal nos tornamos o mal. Mas o que fazer? Como escolher o que vamos ler senão lendo? Como eu poderia apreciar a beleza da escrita de um Mia Couto sem saber que há um lamentável espírito inflado preso da maldade e arrogância que se pensa autor? Será que eu seria capaz de apreciar tanto um bom texto se apenas tivesse lido os melhores autores? Eu não sei, mas a minha fome pelas letras me faz ler e muitas vezes me causa indigestão ou engulhos, ao ler o texto de Mia couto o que eu saboreio é a suavidade de sua alma, assim como experimentei o gosto ocre e nauseabundo do espírito de um miserável alienado ao ler suas palavras pretensamente grandiloquentes e ocas.
Se existe alguma dúvida sobre a realidade da alma, a escrita já deveria de há muito tê-las dirimido, não à toa meu respeito religioso por ela, e minha devoção e sacerdócio as letras. Aqueles que desafiando todos os limites impostos a carne e que com a espantosa magia das palavras leem o que escrevo devoram um pedaço da minha alma, e me preocupa que a minha carne seja digna de tal refeição, é possível aperfeiçoar simplesmente a escrita sem aperfeiçoar o homem como um todo? Não creio, não se trata de mera gramática ou técnica, orações subordinadas e adjuntos adverbiais, diversos tipos de narradores e estilos, isso é o pano de fundo de algo mais sublime. Trata-se de ao escrever expor a tecitura de seu próprio destino aos olhos do outro, num ato de grande generosidade de mostrar a quem quer que deite os olhos ao papel aquilo que só se mostra aos mais próximos e mais amados. Não há como escapar disso aos que se aventuram a escrever, talvez mesmo os tolos e loucos devam nos dar testemunho de sua tolice e sandice, nem só de enlevo e beleza vive o homem, e os tolos e insensatos nunca o se sabem tolos e insensatos e, acreditando-se sempre mais sábios e sãos do que realmente são estarão sempre prontos a dividir com os incautos sua “sabedoria”. Resta-me, portanto, a indagação que devo sempre dirigir a mim mesmo a não ao meu próximo “serei eu mesmo louco ou tolo?”, e a dúvida é o germe da minha escrita...


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