Dois
filmes em particular me chamaram a atenção para essa temática peculiar que
abordarei aqui – mas não me limitarei a eles – V de vingança e Batman. Na realidade,
há algo de insidioso na ideia da máscara nessas duas películas e que talvez
passe despercebido a um olhar menos atento. Os dois filmes são produções Hollywoodianas,
ambos baseados em quadrinhos. Batman não se baseia em alguma história
particular, mas no “mito” do morcego como foi trabalhado por décadas de
roteiristas e desenhistas, mas que encontrou seu tom sombrio e seu renascimento
com o magistral Batman: The Dark Knight Returns de Frank Miller, não é mera
coincidência que o segundo filme da trilogia dirigida por Christopher Nolan se
chamou The Dark Knight Rises. V de Vingança (V for Vendetta) se baseia na obra
homônima do gigante dos quadrinhos Alan Moore, uma série de 10 edições de
Graphic Novels. Além dessas similaridades, há uma ideia que permeia os dois
filmes que tem a ver com as máscaras utilizadas por seus personagens, pois as
tais máscaras não servem apenas para esconder suas identidades, ou mesmo para
criar um efeito de terror ou outro qualquer, não, não se trata disso. Nesses casos,
as máscaras são mais importantes do que os rostos por trás delas, no caso do
personagem principal de V for Vendetta, ele nem mesmo possui um rosto, seu
rosto foi destruído e desfigurado, consumido pelo fogo.
Batman
foi inspirado no Zorro: a máscara, roupa preta e o nome de animal (zorro é
raposa em espanhol), diferente de outros heróis que utilizam a máscara
prioritariamente como uma forma de resguardar suas identidades secretas, há na
máscara do Batman, uma finalidade que vai além de ocultar a face simplesmente. A
máscara de Batman serve para alimentar o sentimento de medo em seus oponentes,
há uma teatralidade que serve ao propósito de combater o crime, o medo e a
escuridão são armas no vasto arsenal do morcego. Mas há uma ideia que foi
explorada no filme que me chama a atenção. Na película, Ra’s Al Gul sugere ao
confuso e desorientado Bruce Wayne que ele precisa se tornar mais do que um
homem, precisa se tornar um símbolo, do contrário sua luta estaria fadada ao
fracasso, esse tema é explorado e levado ao seu limite, de uma forma que me
parece profundamente inadequada, e que revela uma ideologia insidiosa, Batman é
muito maior como símbolo que Wayne, e como símbolo, como dado coletivo,
qualquer um pode ser Batman.
Façamos
uma análise rápida dessa afirmação que vai sendo construída no decorrer dos três
filmes até culminar com a “morte” de Wayne, mas não de Batman. Bruce Wayne
realmente não importa como personalidade? Sem o trauma de ver seus pais serem
brutalmente assassinados, sem ter crescido num ambiente protegido e
privilegiado, sem ter vivido na violenta e decadente Gotham, sem sua fortuna e
vastos recursos, sem seu incidente com morcegos na infância, seria possível um
Batman? A resposta é simples, não, não seria. Todos esses fatores que
correspondem à biografia de Bruce Wayne são cruciais para o surgimento do
cavaleiro das trevas. A morte violenta de seus pais e o choque de ter presenciado
tal ato o marcaram de maneira profunda e surge nesse momento o desejo de não
ser mais um espectador impotente, o desejo de vingança. É uma memória, ligado
ao seu medo mais íntimo, associada a imagem de seu pai – poucas imagens são tão
poderosas quanto a das figuras parentais – que o leva escolher o morcego, Wayne
teme os morcegos, e, como o xamã primitivo, ele veste a máscara do seu animal
totem e se confunde com ele, se torna mais do que simples homem, mas homem e
fera ao mesmo tempo. Mas sem a intimidade de Wayne, sua biografia e história a
máscara seria supérflua.
Passemos
a V for Vendetta, o personagem principal “V” (a letra v ou o numeral romano V,
número da cela onde esteve encarcerado) é o que se pode chamar em quadrinhos de
um “science hero” (conceito explorado por Moore em outras séries como Tom
Strong, por exemplo) é um ser humano alterado pela ciência (nesse caso não
através de manipulação genética direta, mas através de uma substância chamada Batch
5, que lhe altera grotescamente o corpo, mas lhe dá capacidades sobre-humanas. V
é um anarquista que luta contra um governo fascista na Inglaterra após uma
guerra nuclear que trouxe fome e miséria, esse governo fascista chegou ao poder
com a missão de restaurar a ordem em meio ao caos resultante da guerra e ao se
instalar no poder implacavelmente destrói todo o tipo de “minorias”
(esquerdistas, gays, imigrantes, etc). V, que abdica de seu nome e mesmo de seu
rosto, utiliza sempre uma máscara de Guy Fawkes (que inspirou o grupo anonymous), e uma fantasia que consiste
de capa, botas, uma peruca e um chapéu cônico. Os poderes e a fantasia mantém V
como um super-herói, assim como sua máscara, mas V, num certo sentido, foi
privado de sua identidade e de sua essência pelas ações do regime fascista.
Guy
Fawkes foi um soldado católico que participou de uma tentativa de assassinato
do rei protestante da Inglaterra em 1605 através de uma tentativa de explodir o
parlamento, ao ser capturado após a tentativa de explodir o parlamento ter
falhado, Fawkes foi torturado e enforcado por traição. V ao utilizar a máscara
de Fawkes assume simbolicamente seu papel de destruir um sistema que considera
corrupto e injusto, Fawkes é transformado em um mártir e símbolo, o que já
deixa antever o final trágico de V, que assim como o homem de quem toma o rosto
emprestado, se converte em mártir. A máscara substitui o homem, quando V morre,
sua “discípula” Evey assume o seu lugar. Todavia, a insignificância individual
também não se sustenta aqui, V é uma personalidade das mais fortes, assim como
Fawkes fora outrora, é um especialista em explosivos, um homem com conhecimento
de filosofia e política, capaz de refletir criticamente sobre suas ações e um
apaixonado por filmes de “capa e espada” o que, assim como Batman, o
influenciou na escolha de sua “fantasia”. Sem a personalidade do anônimo V, sem
sua biografia que inclui os cruéis experimentos a que foi submetido e suas
perdas, a máscara não teria sentido. O apelo de esquerda é bem mais forte em V
do que em Batman: sua sucessora é uma mulher, ele é um anarquista, sua máscara é
referência a um terrorista católico, ao invés de meros vilões ele combate um sistema
opressivo, todavia há algo de ideologicamente insidioso aqui, como explicitarei
adiante.
Os
extremos opostos a essa postura são O Homem de Ferro e o Super-Homem. Super-Homem,
que é extraordinário em tudo, tem como disfarce o homem médio, o homem comum, o
insignificante Clarke Kent. Ele não precisa de máscara, o homem médio jamais
poderia ser o Super-Homem, ninguém suspeitaria de Clarke, ele sim, o repórter
do Planeta Diário, usa uma “máscara”, óculos. Mas não é isso que o esconde, mas
o fato de que o homem médio jamais poderia ser o Super-Homem. O verdadeiro
rosto do Kriptoniano aparece apenas quando está com seu uniforme azul, Kent de “pequenópolis”
é apenas mais um na multidão, uma recorrência estatística, um “Zé-ninguém”. Há
uma inversão aqui se pensarmos nos dois exemplos anteriores. Diferente do
Super-Homem, o bilionário, gênio, playboy, filantropo Tony Starke é uma
personalidade que se impõe a máscara. Sua máscara é sua criação, uma armadura
que reflete seu gênio, uma arma que se molda ao seu corpo e a sua face, mas que
o revela mais do que o esconde. Em certa medida, qualquer um poderia ser o
Homem de Ferro, pois qualquer um poderia vestir uma das armaduras de Tony (como
Rodney faz), mas a armadura importa pouco, o gênio, o narcisismo, em outras
palavras a personalidade de Stark é o
importante aqui. Na película ele imediatamente revela sua “identidade secreta”,
passa a agir como um astro de rock, e suas idiossincrasias dão o tom do filme.
A máscara em Stark é um detalhe.
A
máscara é um elemento crucial nas histórias de super-heróis, é quase um traço
que define o gênero. Zorro torna-se assim, retrospectivamente, um tipo de
super-herói. Espadachim, cavaleiro, acrobata extraordinário, ele usa a máscara
para poder agir com mais liberdade e ludibriar seus inimigos, nela sua
verdadeira personalidade aparece, ela revela mais do que esconde. O dandy afetado, Diego de La Veja é apenas
uma fração da personalidade, pois Zorro realmente é culto e refinado, mas é, ao
mesmo tempo, um homem de ação. O que acontece com Batman e V, é que há um
extrapolamento da máscara para além de sua função corriqueira nas histórias de
super-heróis, aqui elas são hipostasiadas, passam a importar mais do que quem
as veste. Qual o problema disso, em o homem importar menos do que a máscara? O símbolo
coletivo ter maior importância do que Bruce Wayne. Qualquer um pode ser Batman é
uma falácia, no último filme, seu pretenso sucessor, Robin, era alguém com
traços de personalidade e história extremamente similares aos de Wayne, mas há
algo mais profundo.
Nesse
ponto a perspectiva de Jung vem a calhar. V, ao se reduzir a uma máscara,
torna-se justamente aquilo que uma sociedade fascista, um estado totalitário
espera transformar os seus cidadãos. Fundamentalmente, V e seus esforços, se
confundem com o fascismo que ele combate, eis o perigo de encarar o abismo,
como salientou certa vez Nietzsche. A máscara iguala a todos, massifica,
paradoxalmente (e aí está a mensagem insidiosa) tanto V quanto Wayne são homens
extraordinários e extremamente talentosos. O gênio é algo raríssimo, mas o
talento possui uma recorrência estatística, e o indivíduo talentoso tem a
possibilidade de se tornar uma personalidade diferenciada o que é da máxima
importância para felicidade de um povo. Quando se tenta nivelar a massa do povo
como se este fosse um rebanho, suprimindo o talento, isso leva à catástrofe,
pois se o que se destaca é nivelado, perdem-se todos os pontos de orientação e
aparece o desejo de ser conduzido. Eis a mensagem fascista insidiosa nos dois
filmes, o talento pouco importa, importa um dado coletivo impessoal e que a
todos nivela: a máscara. Em Homem de Ferro, o talento é mostrado na figura de
Starke como sua caricatura: narcisismo, hedonismo e individualismo no sentido
liberal burguês. Em Super-Homem, o homem médio, de tão massificado sequer
consegue enxergar a sua face no extraordinário kriptoniano, ele é um outro, uma
alteridade absoluta, literalmente um alien.
Como aponta Jung, o homem médio desconfia e suspeita de tudo o que a sua
inteligência não pode atingir. Mesmo sem máscara, o homem de aço é irreconhecível
quando se afasta do rebanho, da igualdade, da massa.
O
individuo (na perspectiva psicológica que não se confunde com a noção liberal
burguesa) é o verdadeiro portador da realidade, em oposição ao homem “normal”
irreal. Os fatos reais se evidenciam em sua individualidade, a realidade absoluta
se caracteriza por sua irregularidade. O indivíduo é a exceção e a
irregularidade relativa, todavia a imagem estatística do mundo tem o poder,
segundo Jung, de reprimir o fator individual em favor de unidades anônimas que formam uma massa, e
o ápice desse processo é o conceito abstrato do Estado, entendido como princípio
da realidade política, o que conduz, fatalmente, a que a responsabilidade moral
do indivíduo seja substituída pela razão do Estado. A única vida real, a vida
individual, perde todo o seu sentido e finalidade, ficam barrados a diferenciação
moral e intelectual. A decisão moral é retirada do indivíduo, sua
responsabilidade moral é substituída pela razão de estado.
O grau de liberdade em empírica é
proporcional à extensão da consciência. Sem a diferenciação consciente, se,
para usar a metáfora do filme, qualquer um realmente pode ser o Batman, estamos
diante da igualdade num sentido pernicioso de nivelamento e massificação. Os indivíduos
são iguais apenas na medida em que são amplamente inconscientes. Quanto mais
inconsciente mais alguém é capaz de se adaptar a conformidade. Para Jung,
quanto mais consciente de sua individualidade, mais acentuada se torna a sua
diferença em relação aos outros e menos corresponderá à expectativa comum, ao
mesmo tempo, sendo capaz de perceber conscientemente essas diferenças (a
igualdade inconsciente significa também a inconsciência justamente dessas
diferenças) será capaz de estabelecer relações com outros indivíduos aceitando
a existência de diferenças. A consciência individual é sempre mais diferenciada
e ampla, assim pode perceber as diferenças e se emancipar das normas coletivas.
O homem médio, inconsciente de suas diferenças reais, é incapaz de ver a
diferença personificada no Super-Homem, por isso ele não precisa de máscara. O importante
aqui é perceber que à medida que aumenta a diferenciação individual da
consciência, diminui a validade objetiva de suas concepções, surge espaço para
a aceitação da diferença. Para o homem médio, em larga medida inconsciente,
verdadeiro e válido é aquilo em que a maioria crê, pois confirma a igualdade de
todos (igualdade que se baseia na inconsciência, na identidade inconsciente
entre sujeito e objeto, logo, não passível de ação moral).
Sem a consciência as coisas vão menos bem,
para que exista a consciência do eu, o indivíduo no sentido Junguiano, é
preciso que o eu se diferencie dos outros e apenas onde ocorre essa distinção é
possível haver relacionamento pessoal, do contrário nos tornamos vítimas do
automatismo inconsciente, o que abre um campo fértil para todo o tipo de
contágio psíquico, e não nos permite ter um esteio interior para não
sucumbirmos às pressões externas. Muitos compreendem mal a noção liberal de isonomia, somos todos iguais perante a lei, justamente essa igualdade se funda na existência da diferença e visa a manutenção da diferença. os diferentes são, diante da lei iguais, mas há um equívoco comum de que "sermos iguais no estado de direito" significa a supressão da individualidade, daquilo que foge ao cânone psíquico coletivo, a norma, quando na verdade isso caracteriza o fascismo. Infelizmente, como afirma Zizek, vemos cada vez menos "individualismo" no capitalismo e mais e mais massificação, e talvez a sociedade fascista do futuro seja mais próxima da Itália de Berlusconi do que do mundo do romance 1984. Campbell denominava essa situação, em que o indivíduo desaparece em favor do coletivo de "terra devastada", segundo ele.
E o que caracteriza a terra devastada? É a terra em que todos vivem uma vida inautêntica, fazendo o que os outros fazem, fazendo o que são mandados fazer, desprovidos de coragem para uma vida própria. Esquecem-se que são seres únicos, cada indivíduo sendo uma pessoa diferente das demais. A beleza de uma terra rica está exatamente na convivência dos diferentes, não na mistura deles. Se temos um lugar ou uma era em que todos se alienam e fazem a mesma coisa, temos a terra devastada (...)
O
anonimato da máscara, a despersonalização e o nivelamento a que ela convida são
as bodas com o abismo. São o abandono da possibilidade de diferenciação psicológica,
moral e espiritual, da possibilidade de uma psicologia individual, consciente,
capaz de uma ação moral mais livre e desembaraçada, para a psicologia da massa.
Na massa não há relação individual, e tão pouco respeito pelo indivíduo, pela
diferença, mas apenas a suposição de que seu próprio psiquismo possui validade
geral e que necessariamente se encontra em todos os demais, agindo-se sempre
com preconceito e desprezo pela diferença. Nesse tipo de psicologia vive-se num
ambiente de profunda inconsciência e ao invés de relações genuínas entre
sujeitos, entre indivíduos, há apenas identidade e projeção. O talento,
justamente aquele que aponta para a diferenciação, pois todo progresso genuíno
se inicia pelo indivíduo, não importa perante a máscara, eis a mensagem ideológica
insidiosa por trás das máscaras desses filmes.
Belíssimo texto, professor. Obrigado.
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