sexta-feira, 6 de maio de 2011

Impermanência

Quanto mais estudo, leio, ou escuto ensinamentos dos mestres das várias tradições budistas, percebo que o grande ensinamento é o da impermanência ligado a vacuidade. Não é difícil perceber que tudo a nossa volta está em perpétua mutação, que tudo muda o tempo inteiro, e que tentar se agarrar a algo é como tentar segurar areia por muito tempo entre os dedos. O ensinamento da vacuidade é de que todos os fenômenos compostos são impermanentes e por isso vazios de realidade intrínseca, e o apego surge do desejo que os fenômenos sejam permanentes, ou da ilusão e ignorância de que os fenômenos não são tão irreais quanto o sonho. Todavia, por mais que seja possível perceber com clareza que cada um dos fenômenos que surge em nossa consciência depende de inumeráveis causas e condições para existir e que, quando cessam essas causas e condições ele também desaparece, é muito difícil resistir a tentação do apego.

Compreender intelectualmente é apenas uma parte do processo, no fundo, nenhum de nós gostaria de aceitar essa verdade tão inconveniente. Estamos ligados emocionalmente a muitas coisas e pessoas, associamos nossa felicidade e bem estar e essas coisas e pessoas as quais estamos ligados, por isso nos sentimos infelizes quando temos negado aquilo que julgamos ser a fonte de nossa felicidade. Todos temos apegos, é fácil se desapegar de coisas pequenas, mas quando é algo realmente importante, algo em que investimos muito de nós mesmos, como um relacionamento, um filho, ou quem sabe o trabalho, temos uma dificuldade enorme de nos imaginarmos afastados ou desligados dessas coisas. Muitas vezes até mesmo cogitar a perda ou o afastamento de algo que nos é caro causa uma dor inenarrável. Em nossa sociedade negamos com veemência talvez a maior evidência da impermanência: a morte. Seja a nossa extinção ou daqueles a quem amamos.

Mas ao se compreender minimamente a impermanência, percebemos que a morte é algo corriqueiro, pelo o qual passamos todos os dias, muitas vezes inconscientes dela. A morte não é um fenômeno que ocorre uma única vez, mas se repete uma miríade de vezes. Cada vez que um fenômeno desaparece, e temos de lidar com nossos laços de apego e ilusão estamos passando pelo fenômeno da morte. A cada dia, mesmo a cada instante algo que nos é caro, algo a que estamos ligado, desaparece ou simplesmente muda, pois todos os fenômenos são efêmeros e cambiantes como frágil flor de cerejeira fustigada ao vento. Porém, encontramos mil maneiras de continuar nos agarrando ao aspecto ilusório dos fenômenos, a continuar a negar que tudo é impermanente. Parece extremamente difícil viver em um mundo onde nada permanece, onde tudo é ilusório, mas é exatamente nesse mundo que vivemos.

No budismo existe uma diferença entre conhecer um ensinamento e realizá-lo, essa é uma diferença crucial. Qualquer um que ler essas linhas mal traçadas pode compreender intelectualmente que as coisas estão em perpétuo movimento, mas aceitar essa verdade e fazê-la atuar de maneira poderosa em nossas vidas é algo completamente diferente. Como aproveitar o beijo de sua namorada sabendo que mesmo aquele belo sentimento pode se converter em dor? Ou o sorriso do seu filho, ao se imaginar que aquele sorriso pode desaparecer caso algumas poucas causas e condições cessem? Parece cruel ter que estar todo o tempo reafirmando a finitude, certamente não é fácil. A realização da impermanência é uma das maiores metas do budismo, um dos caminhos para a cessação do sofrimento. O beijo da sua namorada é um milagre, que está acontecendo agora e talvez nunca mais se repita, ele existe nesse exato instante e esse instante, o momento presente é a eternidade. O futuro não existe e o passado é uma ilusão. Cada pequeno momento de felicidade é um milagre, e cada momento de dor, é uma oportunidade de treinarmos nossa paciência e compaixão.

Confesso que a minha experiência com relação a esses ensinamentos é bastante ambígua, minha professora Ani Zamba, sempre me admoesta a falar sobre a minha própria experiência, pois bem, parece que depois de tanto tempo tenho algo a falar que é genuinamente a minha experiência. Algumas vezes a consciência da impermanência torna a sua vida mais simples, a falta de apego faz com que certos fardos não precisem ser carregados. Muitas vezes deixei de me irritar, ou brigar, ou de me chatear com alguém na rua, ou no trânsito, ou outras ocasiões, ao simplesmente deixar as coisas passarem, deixar que os fenômenos, mesmo os fenômenos de nossas emoções e pensamentos, surgirem e desaparecerem. Mas outras vezes, na verdade naquilo que parece ser realmente importante, esse ensinamento em parece um fardo extremamente pesado de se carregar. Treinar constantemente a paciência e a compaixão me faz, muitas vezes, me sentir isolado e sozinho. Quando temos de treinar o desapego com relação aquilo que realmente amamos, ou pensamos que amamos, é um teste árduo, uma prova de fogo que deixa marcas em nossa alma. Muitas vezes me pergunto se “estou fazendo isso certo”, se é realmente assim que deve se sentir alguém que busca esse caminho. Muitas das vezes, o esforço hercúleo de controle de si mesmo para demonstrar compaixão e paciência é compreendido como fraqueza, e confesso que isso ainda me incomoda. Em minha experiência com esses ensinamentos, percebi que desapego e compaixão são bem difíceis de se praticar, que a vacuidade, apesar de óbvia, é algo duro de se aceitar emocionalmente. Sua mente lhe diz “tudo é impermanente”, mas seu coração lhe sussurra “mas eu quero que isto dure!”.

O mestre da minha professora, escreveu em um de seus livros que “algumas vezes a impermanência trabalha a nosso favor”, pois mesmo a dor mais atroz também é vazia de realidade intrínseca e impermanente. Todos os dias nos deparamos com pequenas e grandes mortes, hoje me particular eu talvez tenha que me deparar com a impermanência, naquilo que ela possui de mais doloroso, talvez por isso tenha resolvido escrever uma vez mais sobre esse tema, para me preparar para essa pequena morte que talvez me aguarde e com a qual terei de lidar, não apenas intelectualmente, mas com todas as emoções que suscitará. Nessas horas penso que poderia ter meditado mais, ou ser mais sábio, ou que seria bom ser como os grandes mestres realizados, mas estou condenado a ser apenas o que eu sou, até que o que eu sou mude.

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