O
eleitor sergipano William Menezes utilizou a plataforma digital do senado
E-Cidadania, para propor uma ideia acerca de uma lei que criminaliza o coach,
com o intuito de coibir o charlatanismo praticado por esses profissionais, em
resumo suas justificativas são: eles não possuem um diploma válido, seu
trabalho é um desrespeito ao cientificamente orientado de outros profissionais,
e a utilização de propaganda enganosa. Seus argumentos são convincentes, e
creio que poucas pessoas diriam que são equivocados, eu, porém, creio que
merecem uma análise mais cautelosa, assim como a referida proposta.
Pra
começo de conversa, minha posição pública em relação ao coaching sempre foi
crítica, nunca me furtei de tecer considerações duras com relação a essa
prática e as suas evidentes fragilidades tanto práticas quanto teóricas, porém,
no que concerne a uma lei proibindo a sua prática, eu tenho que levantar sérios
questionamentos antes de pensar em concordar com essa ideia, então me permitam
fazer o papel de advogado do diabo aqui.
Primeiro
uma discussão de princípios, em que pese que minha visão do coaching não difere
muito da de William, apesar de eu também ser bastante crítico quanto a
Psicologia... O primeiro ponto é que o proibicionismo não é exatamente um
método dos mais eficazes para se impedir uma prática como essa, a rigor, a
atuação do estado no sentido de proibir ou coibir determinadas práticas me soa tanto
pouco prática quanto problemática. Apesar de não ser um pensador liberal, e
acreditar na importância de marcos regulatórios de cunho estatal, eu partilho
da crença liberal de que o estado não deve intervir nos costumes, mas creio
nisso por motivos diversos. Jung, em um livro importante, porém pouco lido,
Presente e Futuro, advoga que a substituição da razão de estado pela razão
individual resulta apenas em coletivismo, na impossibilidade da diferenciação
moral individual, o que resulta em estagnação coletiva, pois é da diferenciação
do individuo que vem o progresso coletivo. No caso de uma lei que simplesmente proíba
o coaching, eu me pergunto se não estaríamos justamente substituindo a razão
individual pela coletiva. No que concerne ao charlatanismo e propaganda
enganosa, não sou exatamente um expert, mas acredito que já existem leis que
são suficientes para coibir tais práticas. Obviamente o projeto ainda é
embrionário, mas perguntas práticas devem ser feitas: quem fiscalizaria? Quais as
penas? Que tipificação legal teria de ser criada para que essa prática seja um
crime?
Jung
certa feita asseverou que o efeito psicológico não é exclusivo da Psicologia, e
há algo que parece que os psicólogos ainda não se deram conta, a de que a
psicologia é apenas mais um discurso sobre a alma humana, e não creio que seja
sequer um discurso privilegiado. A psiquiatria constitui também um discurso
sobre a alma, bem como a literatura, a poesia, o cinema, a filosofia, o teatro,
a psicanálise e mesmo religiões como o budismo ou o hinduísmo possuem
sofisticadas reflexões sobre a alma, só para citar alguns exemplos. Desses todos
que eu citei, apenas a Psiquiatria é um discurso científico, e nem de longe é o
mais potente e fecundo deles, de longe, creio que o mais poderoso dos discursos
sobre a alma venha da arte. Não que eu acredite que o coaching possua algo como
um discurso sobre a alma humana, senão uma colcha de retalhos de elementos
disparatados tomados de empréstimo de diversos campos, em especial das
psicologias de viés mais ortopédico. Ainda assim, em termos de princípios, uma
lei como essa toma como justificativa um noção vaga de ciência e cientificidade
que me parece almejar um estatuto de “verdade” que a ciência já abandonou desde
Popper.
No
que concerne ao diploma, talvez julguem que o meu olhar seja enviesado pelo
fato de ser professor universitário, de um curso de Psicologia ainda por cima,
e, não fosse isso suficiente, ter fundado e lecionar e coordenar uma
pós-graduação em Psicologia Junguiana. Com essas credenciais obviamente sou a
favor do diploma. Como bom junguiano minha resposta é um sim e um não
simultâneo. Foucault estava correto ao afirmar que o diploma serve apenas para
constituir uma espécie de valor mercantil do saber, ele prossegue afirmando com
precisão cirúrgica que todos que adquirem um diploma sabem que ele nada lhes
serve, não tem conteúdo, é vazio. O diploma me garante apenas que alguém possui
um diploma, qualquer um que tenha passado pelos bancos de uma universidade sabe
muito bem que é perfeitamente possível sair de uma universidade sem nem mesmo
um mínimo de conhecimentos acerca de sua área, especialmente nos cursos de
Psicologia. Como na piada dos professores de engenharia que convidados a andar
de avião, quando foram avisados que a nave fora projetada e construída por seus
alunos fugiram em disparada, menos um, que nem se moveu e disse “conhecendo os
meus alunos, essa porcaria nem levanta voo”. Mas estou sendo cínico, não sou
exatamente a favor do diploma, mas sou a favor daquilo que as pessoas
subentendem no diploma e que ele não garante: um rigoroso treinamento para se
tornar terapeuta. Coachs não são terapeutas, nem se dizem terapeutas, mas se
comportam cinicamente como se fossem, aliás, todo o discurso deles é pautado
pelo cinismo, é quase perverso em sentido lacaniano, pois se colocam na posição
de gozo do outro, são capazes de, sem pestanejar, lhe prometer o céu a lua e as
estrelas – perdoem-me o uso da Psicanálise, ela se presta melhor do que a
ciência de Jung a enxovalhar.
Antes
de proibir o coaching, também teríamos de nos perguntar, como tantas pessoas
gastam tanto dinheiro com gente que possui um discurso tão claramente perverso,
e que em geral adquirem seu treinamento em cursos de fim de semana e livros
tontos de autoajuda? Creio ser evidente que nossa sociedade padece de enormes
problemas, alguns deles estruturais em virtude de nosso sistema político e
econômico, problemas estes que não têm solução de curto prazo, alguns até
parecem insolúveis. O coaching surge, junto de diversos outros discursos
pautados pelo individualismo burguês, propor saídas fáceis e individuais, que
são obviamente impossíveis, mas que estão em linha com as narrativas mais
corriqueiras no capitalismo que sempre exigem pressa, sucesso e felicidade
agora e com base apenas em si mesmo. Como Jung assevera, o individualismo não
passa de uma acrobacia da vontade, e como o velho Freud já sabia, não somos
senhores em nossa própria casa, logo esse otimismo é bobo e, em si enganoso. Além
desses elementos, vivemos um momento de profundo reacionarismo e
anti-intelectualismo, momento esse que vem se construindo na última década e
parece ter atingido seu auge, e poucas respostas são mais anti-intelectuais do
que o coaching. Não é de espantar, igualmente, que aquilo que os coachings
digam, soe tão similar à doutrina neo-pentecostal da prosperidade, mas embalada
em papel de presente laico.
Outro
aspecto da ascensão do coaching, que não mudará em nada com sua proibição, é o
do fracasso da Psicologia em se firmar como uma via possível do debate público.
Não temos grandes intelectuais psicólogos, como temos grandes intelectuais
psicanalistas, isso se dá porque no geral os psicólogos se rendem
epistemologicamente de maneira muito fácil e rápida a qualquer outro saber que
eles possam macaquear de maneira imprecisa e fácil, seja a Filosofia, as
Ciências Sociais, as Neurociências, a Psiquiatria, a Administração etc. O local
mais improvável de se encontrar um discurso propriamente psicológico é
justamente um curso de Psicologia. Proponho um exame simples e fácil, procurem
a ementa de psicopatologia de algum curso de Psicologia, e verão que não há ali
um debate psicológico, mas sim estritamente psiquiátrico e, no geral, sem
sequer pensar nas críticas que mesmo os psiquiatras se fazem. Como diziam os
medievais “a natureza possui um horror vacui”, esse vácuo deixado pela psicologia
é preenchido por toda sorte de coisas, desde discussões muito estranhas sobre “física
quântica” até o coaching.
Do
que tenho visto até agora, esse projeto me parece ter chamado a atenção de
algumas pessoas mais lúcidas que percebem que o coach pode ser pouco mais do
que um pensamento mágico que custa caríssimo – em que pese que eu acredito que
devam existir pessoas sérias nesse meio em número não negligenciável, que se
prejudicam do charlatanismo e certamente também são contra esse estado de
coisas – e de psicólogos que veem nele uma oportunidade de revanchismo. Tenho sempre
muitas reservas contra qualquer coisa que me soe como reserva de mercado e
corporativismo, e a mim me parece que, no fundo algo que pesa para os
psicólogos no que concerne a essa proposta tem a ver com essas duas coisas. Pouca
coisa de realmente importante mudaria com essa proibição, e como Jung
asseverava, as pessoas esquecem que existe uma inteligência para o mal, como o
coaching pode ser qualquer coisa, seria complicado cerceá-lo, ainda por cima,
como não há qualquer rigor, basta mudar de nome e voilà! Penso que seria mais útil e produtivo tentar pensar nas falhas
da psicologia, da psiquiatria e discutir com seriedade as grandes questões do
nosso tempo que a prática do coaching tenta responder com pensamento positivo:
o individualismo, a falta de empatia, o significado de sucesso, o materialismo,
a pressa, o ocaso das grandes saídas espirituais, as agruras do capitalismo
etc. A lista é longa, e urge que criemos alternativas reais ao coaching, ou que
ao menos, em nosso desespero existencial, sejamos um pouco mais exigentes, que
ao menos as pessoas que vendem “sucesso” sejam realmente bem sucedidas e não gente
que fracassou em outra profissão qualquer e virou coach, que possuam de fato
algum expertise, com ou sem diploma, e que possam comprovar esse conhecimento
ao invés de acreditarmos em qualquer promessa perversa, será pedir demais que
pessoas desamparadas pensem duas vezes antes de agarrar a primeira mão que
surge para lhes arrebatar das águas em que se afogam? Talvez seja, talvez seja
demasiado, mas não vejo saídas simples para problemas complexos, afinal não sou
coach.
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