sábado, 20 de abril de 2019

Coaching, Psicologia e tudo o mais...



O eleitor sergipano William Menezes utilizou a plataforma digital do senado E-Cidadania, para propor uma ideia acerca de uma lei que criminaliza o coach, com o intuito de coibir o charlatanismo praticado por esses profissionais, em resumo suas justificativas são: eles não possuem um diploma válido, seu trabalho é um desrespeito ao cientificamente orientado de outros profissionais, e a utilização de propaganda enganosa. Seus argumentos são convincentes, e creio que poucas pessoas diriam que são equivocados, eu, porém, creio que merecem uma análise mais cautelosa, assim como a referida proposta.

Pra começo de conversa, minha posição pública em relação ao coaching sempre foi crítica, nunca me furtei de tecer considerações duras com relação a essa prática e as suas evidentes fragilidades tanto práticas quanto teóricas, porém, no que concerne a uma lei proibindo a sua prática, eu tenho que levantar sérios questionamentos antes de pensar em concordar com essa ideia, então me permitam fazer o papel de advogado do diabo aqui.

Primeiro uma discussão de princípios, em que pese que minha visão do coaching não difere muito da de William, apesar de eu também ser bastante crítico quanto a Psicologia... O primeiro ponto é que o proibicionismo não é exatamente um método dos mais eficazes para se impedir uma prática como essa, a rigor, a atuação do estado no sentido de proibir ou coibir determinadas práticas me soa tanto pouco prática quanto problemática. Apesar de não ser um pensador liberal, e acreditar na importância de marcos regulatórios de cunho estatal, eu partilho da crença liberal de que o estado não deve intervir nos costumes, mas creio nisso por motivos diversos. Jung, em um livro importante, porém pouco lido, Presente e Futuro, advoga que a substituição da razão de estado pela razão individual resulta apenas em coletivismo, na impossibilidade da diferenciação moral individual, o que resulta em estagnação coletiva, pois é da diferenciação do individuo que vem o progresso coletivo. No caso de uma lei que simplesmente proíba o coaching, eu me pergunto se não estaríamos justamente substituindo a razão individual pela coletiva. No que concerne ao charlatanismo e propaganda enganosa, não sou exatamente um expert, mas acredito que já existem leis que são suficientes para coibir tais práticas. Obviamente o projeto ainda é embrionário, mas perguntas práticas devem ser feitas: quem fiscalizaria? Quais as penas? Que tipificação legal teria de ser criada para que essa prática seja um crime?

Jung certa feita asseverou que o efeito psicológico não é exclusivo da Psicologia, e há algo que parece que os psicólogos ainda não se deram conta, a de que a psicologia é apenas mais um discurso sobre a alma humana, e não creio que seja sequer um discurso privilegiado. A psiquiatria constitui também um discurso sobre a alma, bem como a literatura, a poesia, o cinema, a filosofia, o teatro, a psicanálise e mesmo religiões como o budismo ou o hinduísmo possuem sofisticadas reflexões sobre a alma, só para citar alguns exemplos. Desses todos que eu citei, apenas a Psiquiatria é um discurso científico, e nem de longe é o mais potente e fecundo deles, de longe, creio que o mais poderoso dos discursos sobre a alma venha da arte. Não que eu acredite que o coaching possua algo como um discurso sobre a alma humana, senão uma colcha de retalhos de elementos disparatados tomados de empréstimo de diversos campos, em especial das psicologias de viés mais ortopédico. Ainda assim, em termos de princípios, uma lei como essa toma como justificativa um noção vaga de ciência e cientificidade que me parece almejar um estatuto de “verdade” que a ciência já abandonou desde Popper.

No que concerne ao diploma, talvez julguem que o meu olhar seja enviesado pelo fato de ser professor universitário, de um curso de Psicologia ainda por cima, e, não fosse isso suficiente, ter fundado e lecionar e coordenar uma pós-graduação em Psicologia Junguiana. Com essas credenciais obviamente sou a favor do diploma. Como bom junguiano minha resposta é um sim e um não simultâneo. Foucault estava correto ao afirmar que o diploma serve apenas para constituir uma espécie de valor mercantil do saber, ele prossegue afirmando com precisão cirúrgica que todos que adquirem um diploma sabem que ele nada lhes serve, não tem conteúdo, é vazio. O diploma me garante apenas que alguém possui um diploma, qualquer um que tenha passado pelos bancos de uma universidade sabe muito bem que é perfeitamente possível sair de uma universidade sem nem mesmo um mínimo de conhecimentos acerca de sua área, especialmente nos cursos de Psicologia. Como na piada dos professores de engenharia que convidados a andar de avião, quando foram avisados que a nave fora projetada e construída por seus alunos fugiram em disparada, menos um, que nem se moveu e disse “conhecendo os meus alunos, essa porcaria nem levanta voo”. Mas estou sendo cínico, não sou exatamente a favor do diploma, mas sou a favor daquilo que as pessoas subentendem no diploma e que ele não garante: um rigoroso treinamento para se tornar terapeuta. Coachs não são terapeutas, nem se dizem terapeutas, mas se comportam cinicamente como se fossem, aliás, todo o discurso deles é pautado pelo cinismo, é quase perverso em sentido lacaniano, pois se colocam na posição de gozo do outro, são capazes de, sem pestanejar, lhe prometer o céu a lua e as estrelas – perdoem-me o uso da Psicanálise, ela se presta melhor do que a ciência de Jung a enxovalhar.

Antes de proibir o coaching, também teríamos de nos perguntar, como tantas pessoas gastam tanto dinheiro com gente que possui um discurso tão claramente perverso, e que em geral adquirem seu treinamento em cursos de fim de semana e livros tontos de autoajuda? Creio ser evidente que nossa sociedade padece de enormes problemas, alguns deles estruturais em virtude de nosso sistema político e econômico, problemas estes que não têm solução de curto prazo, alguns até parecem insolúveis. O coaching surge, junto de diversos outros discursos pautados pelo individualismo burguês, propor saídas fáceis e individuais, que são obviamente impossíveis, mas que estão em linha com as narrativas mais corriqueiras no capitalismo que sempre exigem pressa, sucesso e felicidade agora e com base apenas em si mesmo. Como Jung assevera, o individualismo não passa de uma acrobacia da vontade, e como o velho Freud já sabia, não somos senhores em nossa própria casa, logo esse otimismo é bobo e, em si enganoso. Além desses elementos, vivemos um momento de profundo reacionarismo e anti-intelectualismo, momento esse que vem se construindo na última década e parece ter atingido seu auge, e poucas respostas são mais anti-intelectuais do que o coaching. Não é de espantar, igualmente, que aquilo que os coachings digam, soe tão similar à doutrina neo-pentecostal da prosperidade, mas embalada em papel de presente laico.

Outro aspecto da ascensão do coaching, que não mudará em nada com sua proibição, é o do fracasso da Psicologia em se firmar como uma via possível do debate público. Não temos grandes intelectuais psicólogos, como temos grandes intelectuais psicanalistas, isso se dá porque no geral os psicólogos se rendem epistemologicamente de maneira muito fácil e rápida a qualquer outro saber que eles possam macaquear de maneira imprecisa e fácil, seja a Filosofia, as Ciências Sociais, as Neurociências, a Psiquiatria, a Administração etc. O local mais improvável de se encontrar um discurso propriamente psicológico é justamente um curso de Psicologia. Proponho um exame simples e fácil, procurem a ementa de psicopatologia de algum curso de Psicologia, e verão que não há ali um debate psicológico, mas sim estritamente psiquiátrico e, no geral, sem sequer pensar nas críticas que mesmo os psiquiatras se fazem. Como diziam os medievais “a natureza possui um horror vacui”, esse vácuo deixado pela psicologia é preenchido por toda sorte de coisas, desde discussões muito estranhas sobre “física quântica” até o coaching.

Do que tenho visto até agora, esse projeto me parece ter chamado a atenção de algumas pessoas mais lúcidas que percebem que o coach pode ser pouco mais do que um pensamento mágico que custa caríssimo – em que pese que eu acredito que devam existir pessoas sérias nesse meio em número não negligenciável, que se prejudicam do charlatanismo e certamente também são contra esse estado de coisas – e de psicólogos que veem nele uma oportunidade de revanchismo. Tenho sempre muitas reservas contra qualquer coisa que me soe como reserva de mercado e corporativismo, e a mim me parece que, no fundo algo que pesa para os psicólogos no que concerne a essa proposta tem a ver com essas duas coisas. Pouca coisa de realmente importante mudaria com essa proibição, e como Jung asseverava, as pessoas esquecem que existe uma inteligência para o mal, como o coaching pode ser qualquer coisa, seria complicado cerceá-lo, ainda por cima, como não há qualquer rigor, basta mudar de nome e voilà! Penso que seria mais útil e produtivo tentar pensar nas falhas da psicologia, da psiquiatria e discutir com seriedade as grandes questões do nosso tempo que a prática do coaching tenta responder com pensamento positivo: o individualismo, a falta de empatia, o significado de sucesso, o materialismo, a pressa, o ocaso das grandes saídas espirituais, as agruras do capitalismo etc. A lista é longa, e urge que criemos alternativas reais ao coaching, ou que ao menos, em nosso desespero existencial, sejamos um pouco mais exigentes, que ao menos as pessoas que vendem “sucesso” sejam realmente bem sucedidas e não gente que fracassou em outra profissão qualquer e virou coach, que possuam de fato algum expertise, com ou sem diploma, e que possam comprovar esse conhecimento ao invés de acreditarmos em qualquer promessa perversa, será pedir demais que pessoas desamparadas pensem duas vezes antes de agarrar a primeira mão que surge para lhes arrebatar das águas em que se afogam? Talvez seja, talvez seja demasiado, mas não vejo saídas simples para problemas complexos, afinal não sou coach.

domingo, 7 de abril de 2019

Sérgio Moro



O ministro Sérgio Moro é um fenômeno peculiar a ser analisado, especialmente sua ascensão e queda, que acompanha o surgimento e ocaso do “governo” que ele desavergonhadamente ajudou a eleger.
Visto em retrospecto, quando ele sai da seara jurídica, onde de fato ele tinha super-poderes, devido a uma incapacidade do judiciário seguir suas próprias regras e se auto-regular, em virtude de suas ligações intestinas com os poderes políticos e econômicos, bem como com suas ligações íntimas com a religião, especialmente as neo-pentecostais ou com o catolicismo mais tacanho, justo em sua atuação política, seus limites tornam-se auto-evidentes.
Moro é politicamente incapaz, tacanho, sem a menor compreensão de como funcionam os meandros de nossa república, ele é um perfeito representante de sua classe social, o funcionalismo público de classe média alta: um sujeito incapaz de fazer uma leitura precisa da sociedade onde vive, que desconhece a história da nossa nação, sem qualquer traquejo político, e que se julga o parâmetro real da sociedade em termos de ideias e comportamentos. Ele é alguém para quem seus privilégios se convertem em uma venda, que o impedem de aceitar, admitir ou compreender a diversidade e desigualdade de nossa nação. É sempre bom lembrar, somos uma nação marcada pela violência, exclusão, pela mancha indelével de nossos 300 anos de escravidão, e pelo nosso lamentável racismo estrutural. Moro é uma amálgama de tudo isso. Basicamente ele é um medíocre com delírios de grandeza.  Ele é um homem médio, e Jung definia psicologicamente o homem médio como alguém que tem apenas uma coisa na cabeça. Talvez Moro entenda de direito, se ele realmente entender terá sido profundamente desonesto e venal como juiz, mas talvez nem disso ele realmente entenda.
Moro é medíocre, mas assim como muitos iguais a ele, se aproveitou da nossa pretensa meritocracia, pois passar no concurso para juiz federal exige uma dedicação exclusiva, vários anos estudando em cursinhos especializados em dar dicas certeiras sobre os tipos de prova e que mais cai, que é algo possível apenas em que pode se dar ao luxo de passar de 3 a 5 anos sem trabalhar e estudando não para ser juiz, reparem, mas para passar no concurso, coisas distintas. Moro é o resultado de um acúmulo de privilégios e profundas desigualdades sociais, e foi preparado para ter autoridade e não a sabedoria para exercê-la. Além de tudo, ele tinha uma certeza quase paranoica de sua própria grandeza, ele almejava não simplesmente acabar com a corrupção, mas fundar uma nova república, estava quase numa missão divina, embriagado pela própria vaidade e orgulho. Essa mesma miopia parece ser um traço comum em seus pares, uma cegueira que os faz observar o mundo como um construto subjetivo, porém desconhecido, suas ações e discurso mostram que ele lidava com suas fantasias sobre o Brasil e sobre si-mesmo, e não com a maneira como as coisas se comportam, mas a realidade objetiva está aí para nos cobrar um preço inelutável.
Como ministro de um governo pífio e pusilânime ele deparou com a complexidade kafkiana de nosso presidencialismo de coalisão, onde sua vontade não impera soberana, teve de lidar com o humor mercurial das massas, que já não o vê como herói salvador da pátria, e com o humor perverso dos brasileiros que rapidamente ao notar suas óbvias falhas as transformou em piada. Moro não passa de um exemplo do “senso comum ilustrado”, ele é um tolo diplomado, algo que grassa em um país tão desigual como o nosso, um técnico sem qualquer visão de mundo para além dos preconceitos tacanhos de sua classe, mas com delírios de grandeza. Moro esperava ser obedecido, mas acabou sendo apenas escarnecido. Ao se tornar ministro ele uniu a sua pusilanimidade ao ridículo desse governo, ele é apenas mais um piada de mal gosto. Mas Moro é legião, milhares de jovens de classe média alta, racistas, tacanhos, burros e limitados estão viajando para fazer concursos, e sendo adestrados como cães para passar em algum deles e depois desfrutar de sua ignorância numa posição de poder e prestígio, que apenas confirma seus preconceitos afetivos e quimeras. Moro só mostra o resultado nefasto da nossa proverbial desigualdade, um tolo togado, sem o menor traquejo político, sem erudição, nem mesmo erudição jurídica, sem a menor compreensão sociológica da nossa realidade, e inflado pela sua persona de Juiz. Moro se identifica com o cargo que ocupa, mas sabe ele que sua personalidade tacanha e ignóbil foi apenas engolida pelo manto de autoridade de juiz, que não depende de sua personalidade, mas da sociedade que o cerca. Jung chamava essa condição de neurose de identificação com  a persona, ele não é uma pessoa tridimensional, mas um juiz apenas, em geral que se identifica com sua posição social o faz justamente por ser pusilânime e isso o leva a crer que o poder e a majestade da toga não sejam da sociedade, coletivos, mas uma aquisição individual, ele é poderoso e majestoso.
Seu cargo de ministro desvelou para todos a pequenez de sua alma, e são esses homens pequenos e ridículos que nos governa, são esses micróbios morais e intelectuais que passam nos concursos para juiz, devido aos privilégios atávicos e horrendos que os 300 anos de escravidão nos legaram, quase como uma maldição a pairar sobre nossas cabeças, o sangue dos escravos que está até hoje em nossas mãos nos amaldiçoa a sermos para sempre atrasados e provincianos, pois até hoje matamos a criatividade e o talento daqueles que não têm a cor ou o sotaque correto, precisamos urgentemente entender que Moro é a cara do Brasil que não queremos: uma nação escravocrata, desigual, violenta, machista e elitista. A permanência dessa maldição interessa a muito poucos, é preciso lembrar Deleuze ao dizer que a minoria somos todos e a maioria não é ninguém, mas apenas um forma vazia que vez ou outra é preenchida por alguém: homem, macho e cidadão. Moro por algum tempo foi essa maioria, mas só se pode ser maioria ao se abdicar de si mesmo, e isso tem um preço elevado que ele agora paga com sua própria carne.