terça-feira, 4 de novembro de 2014

Jesus, drogas e psicoterapia

Jung, em seus textos, gostava de citar um ditado suíço deverás interessante “Filho de pastor e vaca de moleiro nunca dão para boa coisa”. Há um tom de ironia no gosto por esse dito, pois o pai de Jung era pastor, seu avô era uma espécie de bispo protestante e seus cinco tios eram todos pastores. Como se vê ele mesmo não tinha como ser boa bisca, a se levar em consideração o dito popular. Boa bisca ou não, sua obra pode nos trazer pistas interessantes para o tema que me disponho a debater aqui.
                                                  
A religião ocupou um lugar de centralidade nas pesquisas de Jung, bem como a relação destas com a psicoterapia – que não parecem claras a princípio. E quando fui convidado a escrever algo sobre as igrejas e o tratamento para pessoas acometidas com o vício em drogas, me veio de imediato à mente um seminário proferido por Jung em 1939, em que esse tema veio à baila de maneira interessante. O tema se reveste de um interesse cada vez mais atual, especialmente em nossa nação, em virtude de acontecimentos recentes. Nossa política se encontra em um crítico estado de polarização, em que as igrejas protestantes se empenham em influenciar a condução dos negócios do estado, elegendo representantes que defendem sua visão de mundo, o que inclui uma perspectiva muito particular no que concerne as drogas. Cruzar justamente esses dois temas pode ser algo explosivo, pois, nomeadamente, os políticos protestantes acreditam firmemente em uma posição de combate por meio da força policial, e na demonização dessas drogas, mas, paradoxalmente, acolhem aqueles vitimados por elas (os mesmos que devem ser duramente reprimidos pela ação policial). Essa política se opõe com virulência a qualquer proposta defendida por partidos mais à esquerda de discutir a descriminalização, normalmente com o argumento da defesa da família ou dos valores familiares, de acordo com sua interpretação das sagradas escrituras. Simplesmente colocar juntos esses temas pode ser o bastante para despertar a ira dos dois lados da contenda, o que me coloca em uma posição temerária, todavia é mister discutir tais temas, mesmo correndo o risco de ser chamuscado pelos lumes dos afetos – os próprios e os dos outros.

Jung iniciou o referido seminário com um dado dos mais interessantes, em seus 40 anos de prática clínica até então, tivera apenas seis católicos praticantes, todos os demais eram protestantes ou judeus, ele faz uma ressalva importante e que requer alguma explicação, diz ele que tratou pessoas que tiveram algum contato com o catolicismo, ou que se diziam católicas, mas que tivera apenas 6 católicos. Jung faz uma distinção importante entre religião e confissão. Esta admite uma certa convicção coletiva, compreende sobretudo um credo voltado para o mundo em geral, trata-se de uma questão intramundana; aquela exprime uma relação subjetiva com fatores metafísicos, ou seja extramundanos. O sentido e a finalidade da religião consiste na relação do indivíduo com Deus (cristianismo, judaísmo e islamismo), e o caminho da redenção (budismo). Sem a responsabilidade individual perante Deus, nota bene, não passariam de moral e convenção. O elemento religioso fundamental, que é a relação viva e o confronto imediato com o ponto de referência extramundano finda sendo posto de lado na confissão, que se constitui como instituição pública, à qual pertencem grande número de pessoas indiferentes à religião. Pertencer a uma confissão nem sempre implica uma questão religiosa, trata-se, sobretudo de algo social que pouco ou nada pode acrescentar à estruturação do indivíduo. O critério para uma religião genuína é o fato psicológico, a experiência de uma dinâmica de relacionamento pessoal entre o homem e uma instância extramundana que é um contrapeso ao “mundo da razão”.

Jung também afirmou ter realizado uma pesquisa para saber se as pessoas religiosas com problemas psicológicos procuram um médico ou um sacerdote. Em resposta aos seus questionários, uma porcentagem muito alta de católicos afirmou que certamente procuraria o sacerdote, enquanto uma porcentagem elevada de protestantes afirmava que naturalmente procurariam o médico. Dos poucos judeus que lhe responderam, nenhum procuraria um rabino. Certamente os católicos estavam expostos às mesmas condições sociais dos protestantes e judeus, e mesmo assim apresentavam menor número de neuroses, logo devia existir algo no catolicismo que prevenia que tais afecções acometessem tanto os seus fieis, e Jung aponta dois fatos que ele julgava fundamentais para explicar esse quadro. O primeiro era a existência da confissão dos pecados no catolicismo, é curioso notar, que a confissão é algo retomado por Jung em seus escritos, ao tratar especificamente da psicoterapia afirmava que, com pacientes em que permanecem vivos os remanescentes míticos contidos nas religiões, podia surgir o momento em que se tornava indispensável introduzir as ideias míticas. No caso de católicos praticantes ele recomendava a confissão e os sacramentos da igreja, já no caso dos protestantes que não contavam com a confissão e absolvição o problema era bem mais difícil. 

O leitor pode estar nesse momento se perguntando, imbuído do preconceito iluminista da patente irrealidade da religião, do motivo de se seguir com essa linha de raciocínio que pode parecer, a primeira vista, tão antiquada e fora de moda. Mas, a guisa de explicação, no domínio psíquico, realidade são os fatores eficazes. Tudo aquilo que age, que atua, é real. Retomarei essa ideia adiante, mas, voltando à confissão. Jung chega mesmo a afirmar, que, grosso modo, as fases do processo analítico poderiam ser esquematizadas em quatro etapas: confissão, esclarecimento, educação e transformação. Para ele as origens de qualquer tratamento analítico da alma estão no modelo do sacramento da confissão, todavia essa origem não é uma relação causal, mas um parentesco pela raiz irracional e psíquica. Nesse sentido, a realidade anímica viva e dinâmica que primitivamente deu origem ao sacramento da confissão, se manifesta novamente no estágio inicial do processo analítico.

O outro aspecto apontado por Jung que garantia uma maior saúde anímica aos católicos era o próprio culto, pois o cerne da missa contém o mistério vivo, e é isso o que funciona. Mistério aqui é utilizado por Jung no sentido de mysterium tremendum, não sendo a missa o único mistério da igreja, no rito da benção da fonte batismal na noite de vigília pascal se pode notar que ainda se realizam uma parte dos mistérios de Elêusis. Esses mistérios, e eis a importância atribuída aqui a eles, sempre foram à expressão de uma condição psicológica fundamental, o rito é o desempenho cultural desses fatos psicológicos básicos, sem que haja a interferência da razão, por isso ele deve ser realizado segundo a tradição sem que nada seja modificado ou acrescentado. Como aludi antes isso soa fora de moda, em nosso mundo tudo deve estar sob o crivo soberano da razão, ou ser colocado sob a pecha de falsidade, superstição ou coisa pior. Hodiernamente falar do espírito soa estranho, e, no mínimo fantasioso, pois vivemos as consequências de uma onda irracional de preferência sentimental e universal pelo mundo físico. Nesse sentido, sendo um cientista, deveria estar aqui deplorando a falsidade das igrejas que iludem seus fiéis com falsas promessas, ou, ao menos, seria mais decente falar em receptores químicos ou outra explicação qualquer que reduzisse o nosso problema apenas ao seu aspecto material, ao invés de aludir sempre a fatos psicológicos. Todavia, essa preferência pelo mundo material é chamada por Jung de metafísica da matéria, pois, assim como a metafísica do espírito que outrora suplantou, ela é igualmente lógica, metafísica, arbitrária e simbólica. Nenhum físico será capaz de lhe dizer o que é a matéria, mas apenas a maneira como ela se comporta, fundamentalmente esse aspecto material que parecemos conhecer tão bem nos é tão desconhecido quanto espírito que repudiamos.

O Rito de que Jung nos fala possui efeitos benéficos, pois, assim como as figuras numinosas dos mitos, expressa processos paralelos em seu inconsciente, integrando-os assim à consciência. Como asseverei anteriormente, a religião é o estabelecimento de uma relação com um dado extramundano, com um outro. Em termos psicológicos, postulamos a existência de um inconsciente psíquico, um fator irracional existencial inalienável, ou, como Jung também o chamava, o “fato psicológico real”. Essa alma inconsciente afeta a nossa vida mais do que poderíamos supor a princípio, ela é o nascedouro da consciência do eu e é anterior, simultâneo e posterior a consciência. Visto sob essa ótica o fenômeno religioso não é uma mascarada ou uma quimera, mas um fenômeno real e, principalmente, uma função natural da alma humana hoje e em todos os tempos. É preciso ter clareza que uma ideia é psicologicamente verdadeira na medida em que existe, os fatos religiosos, assim como outros fatos anímicos (emoções, ideias, fantasias, sonhos, em certa medida este escrito), eles simplesmente existem, somos, todavia sempre levados a pensar que tudo na psique não passa de um arbítrio, por isso é tão duro nos libertarmos do preconceito de que a psique e seus produtos são invenções arbitrárias. O campo da psicopatologia, no entanto, dos dá provas eloquentes de que há algo mais na psique além das invenções da consciência. Em termos psicológicos, a religião é a acurada e conscienciosa consideração do numinoso, isto é, existências ou efeitos dinâmicos não causados por um ato arbitrário. Religião, nessa perspectiva, designa uma atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso.

Retornando ao seminário proferido por Jung, ele afirmava que, ao lidar com verdadeiros católicos, o melhor que ele pôde fazer por eles foi reconduzi-los de volta a igreja, pois, quando um paciente é um membro verdadeiro de uma igreja, deve levar isso a sério, não deveria ir ao médico resolver seus conflitos quando acredita poder fazer isso com Deus. Afirmou, nessa conferência, que quando um membro do grupo de Oxford o procurou para um tratamento lhe disse, em resumo “não posso fazer nada melhor do que Jesus”. Está é uma postura que hoje parece ser deverás indigesta para muitos jovens analistas, mas é uma postura de humildade, pois o médico não pode julgar a totalidade da personalidade do paciente, e deve renunciar a superioridade no saber e a qualquer autoridade e vontade de influenciar. Em outra de suas conferências, esta na Inglaterra, disse aos que oferecem psicoterapia que, se é que existe um salvador, ele não é você – a despeito da grande tentação que existe para se colocar nessa posição. Finalmente, Jung conta um caso interessante, que foi imediatamente do que me recordei ao receber o convite para escrever esse texto: um alcoólico histérico fora curado pelo movimento de Oxford, e este o usou como uma espécie de caso modelo e o exibiram por toda a Europa para dar o testemunho de sua cura, mas depois de um tempo ele se enfastiou disso tudo e voltou a beber. A sensação espiritual simplesmente desapareceu. Como eles julgaram tratar-se de um caso patológico resolveram levá-lo a um médico, Jung, entretanto, recusou o tratamento e o mandou de volta a essas pessoas e lhes disse “se vocês acreditam que Jesus curou esse homem da primeira vez, ele o fará pela segunda vez. E se ele não puder, vocês não estão supondo que eu possa fazer melhor do que Jesus, não é?”, e arrematou para a sua audiência: “mas é exatamente o que pensam: quando uma pessoa é patológica, então Jesus não ajuda, só o médico pode ajudar”.

Como já apontei tudo isso pode parecer um tanto estranho, mas gostaria de citar textualmente as palavras de Jung, pois nesse ponto ele expressa o cerne do problema.

Se a experiência da sagrada comunhão for real, se o rito e o dogma expressarem plenamente a situação psicológica do indivíduo, ele pode ser curado. Mas se o rito e o dogma não expressarem plenamente a situação psicológica do indivíduo, ele não pode ser curado (Jung, 2011, p.290).
De acordo com Jung a exigência cristã da imitatio Cristi, deveria conduzir o homem interior ao seu pleno desenvolvimento, mas o fiel de mentalidade superficial transforma o modelo em um objeto exterior de culto, e isso se converte em um obstáculo, pois a veneração desse objeto exterior, o impede de atingir as profundezas da alma. O mediador divino permanece fora do fiel e este continua fragmentado. Não se trata simplesmente da pura imitação, mesmo que levada a extremos, mas de tentar genuinamente, pelos próprios meios, realizar o modelo. Por certo, junto das próprias forças individuais há que haver uma grande parcela de graça, de algo que é Deo concedente, do contrário caímos novamente no preconceito iluminista da primazia absoluta da deusa razão.

Para Jung a culpa dessa falha no que concerne aos objetivos mais elevados da religião não deve ser atribuída ao símbolo cristão, mas a nós mesmos, a uma superficialidade e um equivoco de nossa parte. Cristo, como modelo do homem interior, carregou os pecados do mundo, mas se o modelo permanece exterior, o mesmo se dá com os pecados do indivíduo, tornando-o fragmentário. Ao jogar seus pecados sobre Cristo o fiel escapa da responsabilidade mais profunda, que contradiz o espírito do cristianismo. De acordo com Jung, esse formalismo e afrouxamento foram às causas da reforma, e são inerentes ao protestantismo, como o valor supremo (Cristo) e o maior desvalor (pecado) permanecem fora a alma fica esvaziada. Essa projeção exclusivamente religiosa pode privar a alma de seus valores e torná-la incapaz de se desenvolver no sentido da totalidade, retendo-a em um estado inconsciente. Enquanto um conteúdo permanece no inconsciente ele não pode ser alterado ou mudado, talvez ele até mesmo regrida a uma forma mais primitiva, somente na consciência pode existir mudança, convém salientar, que a despeito da importância do inconsciente para a psicologia, Jung certa feita asseverou que quando não há consciência as coisas vão menos bem. A religião, quando não resvala para o formalismo, afrouxamento e a exterioridade possui um enorme efeito transformador sobre o homem, sendo uma das possíveis vias para a consecução do homem interior. Todavia, quando mera confissão, quando não passa de formalidade, ela se constitui em severo obstáculo ao desenvolvimento anímico. A resposta é naturalmente ambivalente, pois tudo aquilo que é genuinamente psíquico é ambivalente. Mas trata-se aqui de uma discussão psicológica e não teológica, e, nesse sentido, qual a diferença entre o psicólogo e o teólogo? Marie Luize von Franz, ao ser indagada sobre isso em um de seus seminários, respondeu que, para o teólogo, Deus está confinado por suas palavras, ele se autolimitou ao produzir as escrituras. Para o psicólogo, ao contrário Deus ainda fala com os homens, desde que estejam dispostos a escutá-lo, pois ele não é uma realidade apenas externa, mas um fenômeno vivo da alma e que pode ir além ou contradizer criativamente suas palavras eternizadas nas sagradas escrituras.

Diante desse paradoxo, apenas a experiência prática vai poder nos dizer se alguma cura realizada pela igreja é mera fraude ou sugestão, ou uma transformação genuína. Mas o que podemos afirmar é que esse tipo de transformação é possível dentro do dogma e do rito religioso, dentro das condições já expostas. Ao escutarmos as arengas dos pastores e párocos de nossos dias, que ultimamente tem ultrapassado as fronteiras de seus rebanhos e extrapolado os temas teológicos, precisamos nos questionar o que estamos realmente ouvindo? Estamos escutando a exteriorização de um diálogo com o Cristo interior, em que a responsabilidade pelos seus pecados é corajosamente assumida e a condenação ao próximo é reservada ao altíssimo? Ou estaremos escutando a essa idolatria disfarçada de formalismo e exterioridade, em que o fanático, premido pela dúvida interior, procura convencer a todos ao seu redor a fim de aplacar sua própria descrença, um discurso meramente farisaico que é revelador da fecunda alegoria das escrituras sobre o “sepulcro caiado”? É diante dessa dúvida que devemos agir ou tomar uma posição, sem ideias pré-concebidas, reconhecendo o lugar e a importância do rito e do dogma, que falam de maneira eloquente ao lado irracional de nossa alma, sabendo, entretanto, do mal que o formalismo e mascarada podem causar.

Von Franz narrou um caso interessante de um de seus pacientes que possuía um sério problema com a bebida, mas que depois de um certo tempo de tratamento lhe disse que se sentia seguro para tentar beber socialmente em uma festa e lhe perguntou sua opinião a respeito, ao que ela respondeu não saber a resposta, mas que deviam esperar por algum sonho. Ma sessão seguinte o paciente lhe trouxe um sonho em que ele dirigia um carro sem freios e descontrolados morro abaixo até se espatifar, ao que ela respondeu “bom, você já tem a sua resposta”. Assim como nesse exemplo, ao tratar de temas como esses, devemos permanecer humildes e evitar os grandes discursos anunciadores das grandes verdades e respostas, e que ditam aos outros uma forma de viver forçosa e que raramente corresponde a suas disposições subjetivas. Termino com as palavras de Jung “No que me concerne, prefiro o dom precioso da dúvida, uma vez que esta não lesa a virgindade dos fenômenos incomensuráveis”.

Referências

Jung, C. G. (2011), A Vida Simbólica. Petrópolis: Vozes.

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