O facebook tem
sido uma fonte de inspiração para muitos de meus escritos, mas, igualmente, tem
se revelado uma fonte de preocupação. O advento da internet e das redes sociais permitiu que um grande número de
pessoas pudessem compartilhar, em tempo real, suas ideias, opiniões, e tudo
aquilo que lhes vai a alma. O lado negativo dessa possibilidade, até então
inaudita, de se comunicar de maneira tão ampla, é que possibilitou uma maior e
mais massificada capacidade de compartilhar nossos preconceitos afetivos,
ressentimentos fanáticos e ódio. Pessoas que antes destilavam seu ódio de
maneira mais ou menos velada e mais ou menos solitária, ou apenas nos seus
círculos mais íntimos, passaram a perceber que não estavam sozinhas, e que seus
preconceitos afetivos eram solidários com os de várias outras. Essa percepção
levou a muitos desses internautas a proclamarem a plenos pulmões todo o ódio
que medrava em seus corações e, mais grave, a receber aplauso e empatia de
muitos outros. Tornou-se viral, para
usar o termo corrente, certos lugares comuns e platitudes acerca de nossa
sociedade que, mesmo não sendo tão disseminados como as postagens no facebook fazem parecer, ainda assim são
preocupantes. Recentemente, em nosso país, certos grupos organizaram, por meio
das redes sociais, uma reedição da infame “marcha da família com Deus pela
liberdade”, que pedia o retorno da cruel ditadura militar que vigorou em nossa
nação até os anos oitenta do século passado. Por mais pífia e pusilânime que
tenha sido tal iniciativa – a tal marcha em recife contou com 7 participantes e
400 em São Paulo – ainda assim é um fenômeno que merece ser melhor
compreendido.
Desses lugares comuns que são diariamente propagados no
meio virtual, me interessa um em particular, o do “bandido”. Recentemente,
circulou nas redes sociais um vídeo de um brutal espancamento de um suposto
ladrão na Tailândia e que, rapidamente, foi compartilhado e, principalmente,
comentado por muitas pessoas. Os comentários eram basicamente os mesmos: “bandido
tem mais é que apanhar”, “se eu pegasse faria a mesma coisa”, “acho até que ele
apanhou pouco” e o velho e sempre presente “bandido bom é bandido morto”. Me
interessa a psicologia desse “bandido”, ou seja, como se dá essa percepção da
realidade em que aparece de maneira tão forte e coletiva essa imagem do
“bandido”. Como se pode perceber pela uniformidade dos comentários o “bandido”
é uma figura extremamente caricata, ele não possui uma biografia, uma
historicidade, um contexto social ou cultural, ele não possui qualquer tipo de
nuance. Em certo sentido, o “bandido” lembra muito os personagens de contos de
fadas, como descritos por M. L. von Franz, que são meramente esquemáticos e não
representam pessoas reais, pois, nos contos de fadas, o tolo será tolo do
começo ao fim, o esperto resolverá tudo sempre com a esperteza e por aí vai.
Esse caráter esquemático e caricatural nos dá uma importante pista para
entendermos do que tantas pessoas estão a falar quando dizem “bandido”, pois,
resta evidente, que não se trata de nenhuma pessoal de carne e sangue, e,
paradoxalmente, qualquer um pode se prestar a ser identificado com o “bandido”.
Tanto faz um pobre coitado da Tailândia ou um menor negro espancado e amarrado
a um poste no Rio de Janeiro. O aspecto individual pouco importa diante do
apelo coletivo e universalizante dessa imagem.
Jung, certa feita, asseverou que se é aquilo que se
combate. Perceba, estimado leitor, que aqueles que bradam indignados contra os
“bandidos” agem, ou ao menos, discursam, como facínoras. Tudo o que desejam é
que alguém seja: espancado, torturado e morto. Pior do que isso, ao louvarem
essas condutas, mesmo que não as pratiquem, essas pessoas se tornam, elas
mesmas, sem o perceberem, bandidos. Pelo código penal brasileiro isso se
enquadra em incitação ao crime ou apologia de crime ou criminoso, ironicamente,
ao adotarem essas posturas e esse discurso, tornam-se eles mesmos “banidos” e,
pela sua própria lógica, deveriam ser espancados ou mortos.
TÍTULO IX DOS CRIMES CONTRA A PAZ PÚBLICAIncitação ao crimeArt. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime:Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.Apologia de crime ou criminosoArt. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime:Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.
A ironia é, psicologicamente, muito reveladora. Em
primeiro lugar, devemos nos lembrar do que disse certa feita o criador da
clínica e da interpretação dos sonhos, Sigmund Freud, asseverou ele que quando
Pedro fala de João, sei mais sobre Pedro do que sobre João. Ao fazerem
afirmações de cunho tão genérico sobre todos e ninguém, falam de uma imagem
coletiva de grande numinosidade que os fascina e que confere a sua psicologia
esse tom tão desagradável. O caráter de preconceito afetivo e ressentimento
fanático é evidente, salvo raras e honrosas exceções, nenhum desses que
vociferam em nome da truculência conhecem a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, ou a lei brasileira do ECA. Seu modelo explicativo para a nossa
sociedade, se é que se pode chamar assim, é tão simplista e maniqueísta que não
resiste a menor prova da realidade. Parecem se basear nas caducas ideias de
Lombroso da existência de um “criminoso nato” e ignoram completamente qualquer
avanço na teoria forense ou nas ciências sociais, até mesmo desconfiam delas!
Seu ódio encontra respaldo em ampla e atroz inconsciência. Desejam ardentemente
contrapor violência a violência, combater fogo com fogo, até que restem apenas
cinzas de nossa sociedade.
Gosto sempre de lembrar o que Jung afirmou em seu Tipos Psicológicos, na realidade uma
variação do “se é aquilo que se combate”, mas um tanto mais precisa em termos
psicológicos. Disse ele que sem o cisco em nosso olho não podemos perceber a
trave no olho do outro, mas, sem autoconhecimento, corremos o risco de teorizar
que todas as traves são ciscos. É exatamente isso que presenciamos nessa
medonha psicologia do “bandido”, como o próprio fenômeno o demonstra de maneira
cabal (seja pelo discurso violento e facinoroso, seja pelo efetivo crime de
apologia de crime). O que essas pessoas são incapazes de perceber é que, isso
Jung já dizia, qualquer um está sujeito a cometer um crime. O “bandido” no
sentido de um criminoso nato, ou de alguém que em nada tem a ver conosco, não
passa de uma quimera. O caráter de fascínio e autonomia dessa imagem me parece
bastante evidente, e, tal autonomia reforça a hipótese de se tratar de um
fenômeno inconsciente e, na medida em que for inconsciente será projetado, pois
todo inconsciente é projetado. A projeção, de acordo com a Psicologia Complexa,
é um fenômeno inconsciente e automático em que um conteúdo que é inconsciente
para o sujeito é projetado em um objeto e, por meio da projeção, o conteúdo
parece realmente pertencer ao objeto. Nesse ponto não é ocioso sublinhar que no
entendimento de Jung o inconsciente – e isso parece ser extremamente difícil de
digerir –não é algo que precise ser escavado para ser encontrado, mas que a
toda hora perturba e se intromete na ação consciente.
Na realidade o termo projeção não é o mais adequado, pois
para a pessoa envolvida não há projeção. Jung é claro nesse ponto, só se pode
falar em projeção quando surge uma dúvida, enquanto isso não existir não é
legítimo falar em projeção, se trata de identidade
arcaica. A projeção implica que já não estou inteiramente convencido, já
estou, ao menos um pouco, fora da identidade arcaica, até que isso ocorra não
existe projeção. Como se trata de um fenômeno inconsciente, ele se apresenta
como realidade, e mais, como a experiência
total da realidade. Naturalmente, o espectador que não está envolvido
duvida da veracidade da identidade arcaica e por isso, para ele se trata de
projeção. O que torna o debate sobre o tema extremamente difícil e, quase
sempre, fadado ao fracasso, pois só se pode mudar aquilo que é consciente. O
desenvolvimento da personalidade exige a diferenciação da psique coletiva, essa
confusão entre a psique individual é coletiva acarreta consequências nocivas,
tanto para o próprio sujeito quanto para seus semelhantes no caso dele exercer
qualquer influência sobre o meio em que vive.
Em sua identificação com a psique coletiva, ele tentará impor aos outros as exigências do seu inconsciente, uma vez que esse tipo de identificação provoca um sentimento de validez geral (“semelhança a Deus”). Em tal eventualidade, ignorará por completo as diferenças da psique pessoal dos demais. (o sentimento de validez geral provém, naturalmente, da universalidade da psique coletiva). Uma atitude coletiva pressupõe, obviamente, esta mesma psique coletiva nos outros. Isto significa, porém, um menosprezo implacável frente às diferenças individuais (...) Tal desprezo pela individualidade significa a asfixia do ser individual, em consequência da qual o elemento de diferenciação é suprimido na comunidade. (Jung, 1997, p.27).
Percebemos com clareza que o discurso do “bandido” é o
cisco que enxergamos em toda a parte, menos onde seria mais útil enxergá-lo: em
nós mesmos. Sem o autoconhecimento, nosso conhecimento da realidade torna-se
muito limitado, como afirmou Jung, e isso se mostra com rara nitidez no
fenômeno em questão. O autoconhecimento frequentemente esbarra no preconceito
de que tal fato não acontece “conosco”, “com nossa família”, e se defronta com
pretensões ilusórias sobre a presença de certas qualidades que apenas servem
para encobrir os fatos. Ao bradar que os outros são “bandidos”, ou como se deve
tratar os “bandidos” (normalmente com notável crueldade) se expressa claramente
o preconceito de que somente os outros e nunca nós mesmos ou nosso meio mais ou
menos imediato, podem praticar crimes. Quando, é um fato da realidade, que
qualquer pessoa está sujeita a isso, e que, não passa de um desejo quimérico, a
existência desse “bandido”, desse outro absoluto que nada tem a ver comigo e
que não passa de uma imagem da fantasia inconsciente projetada. Mas quem ou o
quê é esse “bandido”?
Primeiro analisemos o fenômeno do “bandido”. Em geral,
para o preconceito corrente, o “bandido” é identificado com o negro e o pobre.
Isso desde a época de Lombroso, que a partir do exame das prisões de sua época
em que a maioria dos encarcerados eram negros ou mestiços, que esses seriam
mais propensos ao crime, e passou a realizar até mesmo medições para uma
anatomia do criminoso. Lombroso, assim como muitas pessoas de nossos dias,
desconsiderou o contexto social em que os crimes ocorriam e simplificou de
maneira grosseira a realidade com que se deparou. Em sua época ele estava
respaldado por diversas teorias racistas que consideravam negros e mestiços
naturalmente inferiores. Essa ideia, de uma superioridade de um povo em relação
a outro não existiu apenas no contexto do contato entre o europeu e o negro
africano. Os chineses, por séculos, se consideraram superiores a todos os
demais povos; os japoneses desprezavam os coreanos a quem chamavam
depreciativamente de “comedores de alho”, os judeus do início do império romano,
como está registrado nas escrituras, desprezavam os samaritanos. Os gregos
consideravam bárbaros todos aqueles que não falassem grego, assim como os
romanos também alcunhavam de bárbaros todos os que não falavam latim. Mesmo
entre os africanos, os ódios intertribais persistem mesmo em nossos dias, de
uma maneira extremamente sangrenta, como a história recente dá eloquente
testemunho. Em nosso contexto, em virtude de nossa história escravocrata, essa
projeção recai sobre o negro e/ou pobre, assim como na Alemanha, no período
nazista, recaiu sobre o povo judeu. Trata-se da reatualização diacrônica de um
funcionamento da psique que é transhistórico.
Esse fenômeno depende em larga medida do preconceito de
que tal fato não acontece “conosco”, e da pretensão ilusória da presença de
certas qualidades, todavia, “cada um tem em si algo do criminoso, do gênio, e
do santo”, e apenas pela repressão desse algo do criminoso é que o torna
inconsciente e, consequentemente projetado – mesmo no mito bíblico a sociedade
se inicia primeiro com uma desobediência e depois com um assassínio. É um
fenômeno que pode ocorrer na análise, que ao trazer o inconsciente pessoal à
consciência o indivíduo se torne consciente de coisas que já conhecia nos
outros, mas não em si mesmo. Assim, quem brada contra os “bandidos” não percebe
que eles são símbolos de sua própria alma e do criminoso que leva uma vida
inconsciente em seu coração. O “bandido” encarna as qualidades negativas seja a
violência, o desrespeito a lei (ambas presentes na reação dos “homens de bem”
aos “bandidos”), assim como o medo e a insegurança. No fundo, o “bandido” é uma
metáfora para o mal e o desejo de que ele seja morto, pode ser compreendido
psicologicamente, como uma forma concreta de repressão. Não se deseja
conhecê-lo, confrontar-se moralmente com ele, mas simplesmente destruí-lo,
concretamente no outro. Mas, como afirmou Zimmer, o Dragão não pode jamais ser
derrotado apenas pela força das armas, se assim for vencido ele sempre
ressurge, apenas a autodissolução do herói o derrota, quando ele vence em si
mesmo as qualidades negativas que existem na fera.
Todavia, em termos psicológicos, o que significa o
“bandido”? Na mitologia grega – as figuras míticas correspondem a vivências
interiores – temos alguns exemplos de bandidos, especialmente no mito de Teseu.
Depois de descobrir a identidade de seu pai e reaver suas sandálias e espada,
rumou para Atenas e, no caminho, se defrontou com seis perigosos bandidos: o
primeiro foi Periphetes, que enterrava as pessoas no solo a golpes de tacape.
Perseu o derrotou e tomou-lhe o tacape. O segundo foi o bandido Sinis que
amarrava suas vítimas a pinheiros e os envergava até o solo e depois os soltava
despedaçando suas vítimas. Teseu o matou usando o mesmo método empregado por
este para assassinar suas vítimas. O quarto foi uma besta, um porco selvagem
que, segundo algumas fontes, era filho de Typhon e Echidna. O quinto Cercyon,
que desafiava os viajantes para uma competição de luta Greco-romana e depois de
vencê-los os matava. Teseu o derrotou e depois matou, como Cercyon fazia a seus
oponentes. O último e mais famoso era Procrustes, que possuía duas camas de
ferro e as oferecia aos viajantes que nunca cabiam perfeitamente. Se alguém era
maior ele lhes cortava as extremidades e, se era menor, os esticava até a
morte. Teseu o derrotou e o matou usando o mesmo método de tortura.
Perceba que, na imaginação mítica, que é uma fantasia
muito similar aquela que estamos analisando, Teseu puniu os bandidos aplicando
neles os mesmos tipos de maldades que eles utilizavam em suas vítimas, e, ainda
mais importante, cada um desses facínoras guardava uma entrada para o submundo,
o mundo dos mortos. Cada um deles era uma figura esquemática, que sempre
praticavam o mal e sempre da mesma maneira, um deles nem mesmo era humano, mas
um porco. Teseu se confronta com eles e, para puni-los, age exatamente como
eles, e por meio dessas peripécias consegue chegar ao seu destino, para ser
reconhecido pelo seu pai, o rei. Como podem perceber, essa fantasia mítica nada
tem de patológica, pelo contrário ela leva a realização da imagem do Si-mesmo.
O “bandido” que estamos analisando aqui é a contraparte do
“homem de bem”, e funciona para este de maneira compensatória e complementar, ergo podemos afirmar que o “bandido” é
uma forma de sombra coletiva. Creio
que aqueles que acompanham os meus escritos já devem ter percebido que com
frequência critico as interpretações “junguianas”
mais comuns que simplesmente e de maneira apressada, abandonam o fenômeno e
logo colocam sobre ele um conceito, na forma de uma colagem conceitual que
pouco ou nada explica. Sempre retorno a esse ponto, de que o único critério de validez de uma
hipótese em Psicologia Complexa é o seu valor heurístico, isto é, explicativo.
Pois bem, abusus non tollit usum, entretanto
o que significa falar em uma projeção de sombra nesse caso em particular? E qual
o valor heurístico dessa hipótese?
Jung dava uma especial importância à sombra, pois
juntamente com a anima e o animus, é empiricamente um dos arquétipos que mais
frequentemente perturbam o eu. Um arquétipo, como a análise do “bandido”
demonstra, é uma categoria da fantasia,
bem como uma intensa experiência
emocional (nosso objeto empírico de estudo dá prova eloquente disso).
Dessas 3, a sombra é a mais facilmente acessível a experiência. A sombra
representa um problema moral que desafia a personalidade como um todo, trata-se
do trabalho árduo de reconhecer os traços obscuros da personalidade. A
dificuldade reside no fato de que os traços obscuros do caráter possuem uma
natureza emocional e autonomia e propensos a possessão. Quando se é vitimado
pelas emoções se revela uma considerável incapacidade de julgamento moral.
Esses traços obscuros, inconscientes e autônomos, como tudo o que é
inconsciente, são projetados, sendo assim, ao invés de individualidade só
encontraremos uma atitude coletiva, isto é identidade
arcaica. Essa atitude coletiva impede o reconhecimento de uma psicologia
diferente, pois estando o sujeito orientando coletivamente é completamente
incapaz de pensar e sentir de outra forma que não seja a projeção. O efeito emocional
e sugestivo desses traços obscuros de caráter parece provir, sem dúvida, de outra pessoa! Essa certeza se apresenta
como experiência total da realidade, por isso a compreensão e vontade claudicam
e esse reconhecimento implica um esforço moral que ultrapassa as forças do
indivíduo.
Ao observador externo o caráter projetivo salta aos olhos,
o “bandido”, paradoxalmente pode ser qualquer um e parece não ser ninguém em
especial. A forte emoção associada a essa imagem de caráter arquetípico pode
ser constatada na característica inflamável e incendiária que esse debate
suscita. Rapidamente se eleva a temperatura dos afetos e toda possibilidade de
discussão racional se perde. É fácil perceber como a lógica dos argumentos se
deteriora, resvalando rapidamente me slogans e desejos quiméricos, deixando
claro o caráter de possessão que essa imagem, a projeção desses traços obscuros
do caráter de natureza emocional e autônoma possuem, mas sente-se isso como
provindo de fora e não de dentro. Sugiro que discutam esse tema no facebook para uma oportunidade de
observação empírica...
A consequência trágica da projeção é o isolamento em relação
ao mundo exterior, que se torna uma concepção própria, porém desconhecida. Sobre isso Jung nos ensina,
(...) as projeções levam a um estado de autoerotismo ou autismo, em que se sonha com um mundo cuja realidade é inatingível. O “sentiment d’incomplétude” que daí resulta, bem como, a sensação mais incômoda ainda de esterilidade são explicados de novo, como maldade do mundo ambiente e, com este círculo vicioso, se acentua ainda mais o isolamento. Quanto mais projeções se interpõem entre o sujeito e o mundo exterior, tanto mais difícil se torna para o eu perceber suas ilusões. (1988, pp. 7 e 8).
A fantasia, que é sentida como experiência total da
realidade, pois é inconsciente, autônoma e se encontra projetada, logo sentida
como algo externo, isola o sujeito e traz um sentimento de insatisfação
intenso, sentido como maldade do mundo exterior, o que acentua o círculo
vicioso. Acontece que essa fantasia, o “bandido”, em si mesma, nada tem de
patológico, como o mito de Teseu nos mostra. Pelo contrário, ela possui todo o
direito de existir. Como vemos em Teseu, o confronto com os bandidos fez parte de
sua jornada de encontro com seu pai o rei e posteriormente, com a renovação da
figura do rei, com o próprio Teseu subindo ao trono. O confronto com a sombra é
indispensável para o autoconhecimento, mesmo que árduo, perigoso e inglório. Essa
fantasia é uma ideia religiosa, e é inteiramente legítima, mas se projetada na
vida exterior e aí desejada é impossível. O problema não é a fantasia, mas o
modo como esses indivíduos querem realizar a fantasia é infantil, para utilizar
a fecunda expressão de Campbell, ela perde seu valor de metáfora. Mas justamente
nessa fantasia desvairada, que se deseja realizar na realidade externa e, com
isso, leva a uma sensação de esterilidade explicada como maldade do mundo, é o
caminho que leva ao grande segredo escondido no labirinto do inconsciente,
guardado pelo monstro que se deve abater (em nós), e que traz em si a
possibilidade de renovação de vida.
O que se deve fazer
em termos práticos? Já que isso suscita um debate político dos mais importantes
e envolve o drama humano de inúmeras pessoas? Se sabemos que se trata de algo irracional,
que todo argumento racional é debalde nessa situação? Eu sinceramente não sei,
mas, em minha vida, me pauto por aquilo que Jung nos legou, esse texto que você
tem em mãos é prova viva disso,
Por toda parte do mundo ocidental, já existem minorias subversivas e incendiárias prontas para entrar em ação, que gozam da proteção de nossa humanidade e de nossa consciência jurídica. Face à disseminação de suas ideias, nada podemos contrapor a não ser a razão crítica de uma certa camada da população, espiritualmente estável e consciente. (2011, p.11).
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