sábado, 22 de fevereiro de 2014

MONONOKE HIME

Esta é a segunda vez em que vou falar sobre o filme Monnoke Hime (もののけ姫), em português, princesa Mononoke, de Hayao Miayzaki. Eu não gosto de me repetir, e ninguém pode me acusar de falar sempre sobre a mesma coisa (hoje mesmo, mais tarde vou falar sobre games e filosofia e amanhã sobre zumbis), mas, confesso, que na primeira vez em que fui convidado a falar sobre ele, o meu temperamento extrovertido não me deixou fazer algo lá muito bom ao ver um auditório com apenas 3 pessoas. Quando gentilmente me convidaram para tratar de algum filme sob a ótica da psicologia complexa de Jung, este foi o primeiro que me ocorreu, por querer ter a oportunidade de debatê-lo novamente, pelas suas qualidades intrínsecas e, por um derradeiro motivo, que deixarei claro no decorrer da minha análise.



Como estou falando para estudantes interessados em psicologia complexa, um tema que é desconhecido, ou, quando muito, mal entendido, é preciso que eu inicie a minha fala explicando o método de interpretação dessa ciência. Ao falar sobre o método, que Jung chamava de filológico, ou seja, o método de amplificação, costumo me reportar ao livro de M. L. Von Franz A Interpretação dos Contos de Fada, onde ela principia justamente por expor este ponto. O método possui 3 passos, o primeiro consiste em amplificar o tema a ser estudado com o máximo possível de paralelos. Jung dizia que era preciso elencar todos os paralelos existentes, coisa que ele fazia, como seus textos demonstram. Franz era um pouco mais compreensível e se contentava com apenas 2000 paralelos dentre os existentes. Eu considerava, até a bem pouco tempo, que era bem conhecido o fato de Jung ter abandonado a associação livre de Freud – coisa de que tratei em um texto de viés mais epistemológico e que estará em meu próximo livro – mas descobri que não é esse o caso, por isso vou me estender um pouco na explicação da amplificação, que está diretamente ligada ao abandono do método Freudiano.


Para Jung, a psicologia faz uso do ignotium per ignotius explicando algo desconhecido por algo ainda mais desconhecido, já que não pode reconstituir o fenômeno observado em outro meio, como a física o faz por intermédio da matemática. A psicologia, ao fazer uso do método das ciências naturais, o método descritivo, reconstrói o fenômeno observado no mesmo meio. Nesse sentido, todo processo psíquico, na medida em que pode ser observado já constitui em si teoria, ou seja, uma concepção, a teoria acerca desse fenômeno observado não passa de uma variante dessa concepção. Disso decorre que a psicologia é um conhecimento “no psíquico”. A interpretação deve ser uma variação da mesma concepção (em outras palavras amplificação) do contrário ela é uma compensação ou polêmica. A interpretação que se justifica cientificamente não é apenas uma tautologia, mas uma ampliação (algo que amplia o sentido para formar uma concepção mais geral). Nesse ponto é que a psicologia está situada além da ciência natural. O método de Freud é abandonado ao se perceber que qualquer imagem que surja, num sonho, por exemplo, já é, por si, uma concepção inequívoca e suficientemente positiva, dessa forma, não se deve empregar quaisquer outros pontos de vista que não sejam manifestamente indicados pelo conteúdo. Além disso, Jung era paradoxal em seu método ao adotar simultaneamente as perspectivas: qualitativa causal e quantitativa final. Compreendendo finalidade como a tensão psicológica imanentemente dirigida a um objetivo futuro. A causalidade tende a reduzir as imagens a algo simples e elementar. Para o ponto de vista da finalidade, por outro lado, riqueza de sentido reside na diversidade das expressões simbólicas, e não na uniformidade de significado. Vê-se assim, com clareza, que não se trata de alegoria psicológica ou de outra sorte, pois a finalidade não reconhece significados fixos dos símbolos. Não se trata, como tolamente se faz com frequência, em simplesmente dizer que isto é a anima e aquilo é a sombra, tal atitude não é científica e não possui sustentação epistêmica, não passa de uma vulgata do opus de Jung, e espero que, ao menos esse ponto, fique claro.

O segundo passo é compreender as funções desempenhadas por essas imagens e seu contexto específico, bem como as mutações que sofrem no decorrer da narrativa e suas relações com as demais imagens. Nesse ponto, assim como se dá com a análise dos sonhos, é importante discernir as dramatis personae iniciais, bem como o quando e onde da história e, perceber como isso muda, ou permanece o mesmo, no decorrer da história até seu final. Esse dinamismo próprio das imagens simbólicas que vamos analisar é fundamental. Precisamos compreende-lo, pois toda interpretação é um obscurecimento da luz original dos símbolos que estamos estudando. Ainda quanto a esse ponto, cito textualmente M. L. Von Franz:

Podemos considerar a questão sob um outro aspecto, o da variedade infinita de símbolos. Se chegarmos à conclusão apressada de que certos símbolos representam o Self, poderemos estar certos em relação a um determinado motivo ou sonho, mas não estaremos fazendo uma interpretação mitológica e geralmente válida. Mesmo que, tecnicamente falando, isso não seja errado. Uma afirmação tão generalizante é destituída de sentido. Um símbolo do Self não equivale a outro. É portanto necessário precisar nosso pensamento e nos questionarmos sobre as diferenças existentes entre símbolos como a Mandala, o Ovo, o Diamante, a Esfera de ouro, o Tesouro a ser descoberto, a Criança, o Herói ou Heroína etc., cada um deles representando um aspecto do Self. A primeira situação que pensamos é que o Herói é um ser humano, ao passo que a esfera e outros objetos não o são, o que parece uma afirmação banal, mas que é preciso compreender situando-a em seu justo lugar. Se, em certos materiais, a totalidade aparece sob a forma de símbolos impessoais como uma árvore, ou semi-humanos como o Herói, a correspondência se dá em relação a qual diferença psicológica? (2010, p.41)
O derradeiro passo é o “mas psicologicamente”, aonde, aí sim, vem a interpretação em termos da ciência psicológica. É preciso ter em mente, e eu devo insistir nesse ponto com certa veemência, que o único critério de validade de uma hipótese em psicologia complexa é o seu valor heurístico, isto é, explicativo. Creio que convém salientar esse termo único. É preciso que a interpretação nos esclareça sobre algo dos símbolos que estamos estudando, que ela acrescente algo ao conhecimento sobre o homem e que, traga para a nossa consciência, algo que antes era apenas obscuramente pressentido, enriquecendo-a com esses conteúdos, integrando-os a atitude consciente. Nenhuma interpretação pode se arvorar a ter uma palavra final, principalmente pelo fato dela depender da equação pessoal daquele que interpreta, nesse caso, a minha. É preciso que se estabeleça uma verdade, mas é mister recordar que não se pode estabelecer “a verdade”. Quando reconheço os meus próprios complexos e a interferência de meu inconsciente no processo de interpretação, eu posso expressar a minha verdade, visto que, ao tratar de um problema coletivo, também sou direta ou indiretamente afetado por ele. Como veremos, esse é um ponto fundamental da bela mensagem desse filme.

O filme principia nos mostrando a paz bucólica de um vilarejo isolado e distante, que se vê perturbada pela aparição de um monstro de dor e raiva, que ataca cegamente qualquer um, de maneira indiscriminada. Nesse ponto somos apresentados a Ashitaka, e a sua contraparte animal, Yakul. Para salva sua vila, e a sua irmã, ele luta contra o monstro. Ashitaka apela aquele deus desconhecido que dê meia volta, mas a fera coberta por uma substância viscosa que se move como se fossem vermes, ignora esses pedidos, tomada pela fúria. Ele luta, usando seu arco e mata a fera, mas é mortalmente ferido em seu braço, envenenado pela mesma loucura que dominava o deus desconhecido, um ódio incontrolável. Ao morrer, percebe-se que se tratava de um javali, um deus da montanha.

Nesse ponto já se revela um dos aspectos fundamentais dessa obra. Ashitaka e seu povo são proscritos, uma raça antiga que foi combatida pelos japoneses e expulsa para as paragens mais remotas até serem tidos como extintos. São também um povo decadente, Ashitaka é seu último príncipe, e, segundo a velha sacerdotisa, deve partir para não mais voltar, pois deve ir ao lugar onde a fera vivia e testemunhar o que acontece com olhos mais ingênuos, não maculados pela raiva, que agora o consome lentamente. A mensagem aqui é eloquente: ninguém está realmente isolado. Ao realizar uma interpretação, temos que nos recordar que o enredo é sempre uma resposta a uma situação consciente específica. Nossa sociedade se caracteriza por um profundo individualismo, e por um egoísmo crescente. As classes mais abastadas assistem por detrás de seus muros a violência cometida pela polícia contra os mais pobres, assiste a guerras que assolam lugares distantes como a África ou o Oriente Médio, e se julgam a salvo. Mas vivemos todos nesse mesmo mundo, partilhamos um pequeno grão de poeira no cosmos e, nenhuma muralha, pode nos proteger da escuridão em nós mesmos, que, por meio da projeção de conteúdos inconscientes para o sujeito, parece sempre pertencer a outrem. Tat Tvam Asi, gostava de repetir Campbell “tu és isto”. Não é à toa que Jung chamou o inconsciente, e eu sempre gosto de lembrar dessa definição, de dado irracional existencial inalienável. Nós podemos nos livrar de nossos amigos, colegas, professores, família, ou até tentar fugir da sociedade, ir para o mato, mas não podemos descartar a nós mesmos.

Campbell falava de quatro funções do mito, uma delas era a função sociológica, ou seja, de que o mito visava dar validade a uma determinada sociedade em um determinado tempo, mas isso também significa que, assim como fazemos parte dessa sociedade, ela também faz parte de nós e, em algum nível, de alguma maneira, seja de uma forma individual ou pela via coletiva, precisamos encontrar alguma harmonia com esta sociedade em que nascemos. Não conseguir isso é construir outro muro além daquele que nos separa dos perigos da rua, um muro que está dentro de nós, nos condenando a uma cisão neurótica e a pagar o preço por uma tal divisão. Eu creio, e digo isso com convicção, que o preço a se pagar por demolir esse muro, o preço a se pagar por sermos quem somos, é ainda mais alto, mas a recompensa é bem maior, o tesouro é o sentido que podemos achar por detrás desses tijolos que nos separam de nós mesmos e, que ao nos separar de daquilo que somos, nos separa de nosso próximo.

Isso me recorda de uma divertida historieta zen, estava Ananda meditando nas cercanias de uma floresta, mas o canto dos pássaros o distraia, incomodado foi meditar às margens de um caudaloso rio, mas aí, novamente, ele se sentiu incomodado, dessa vez pelo ruído dos peixes, até que, por fim, comeu todas as aves e peixes e foi meditar no interior de uma caverna, mas ali, teve dor de barriga e não conseguiu meditar. Em outra historieta, um jovem acólito, sempre que sentava-se para fazer zazen era incomodado por uma aterradora aranha gigante, e por isso não podia meditar. Preocupado ele procurou seu mestre e narrou a insólita história, como solução o monge mais velho lhe deu um pincel de caligrafia e lhe disse que, assim que a aranha monstruosa surgisse, ele deveria pintar um círculo no ventre da criatura. E assim ele o fez, e o bicharoco realmente sumiu e ele pode meditar em paz, mas, assim que terminou sua meditação, percebeu que existia um círculo pintado em seu ventre.

Ashitaka, que deve testemunhar com olhos livres do ódio, é uma variação mais espiritualizada e superior do herói tolo. O tolo, nos ensina Franz, simboliza o caráter genuíno básico, a integridade da personalidade. Mesmo ferido de morte, mesmo envenenado pelo ódio, ele permanece íntegro, é capaz de atravessar os muros e ver com olhos mais claros. Nele o eros prevalece, e onde existe eros não há poder.

Ashitaka é um príncipe, o último de sua raça, e mesmo assim, ao ouvir o oráculo, ele deve deixá-los e condená-los a sua derrocada final. O oráculo nesse filme, como as penas, ou o novelo, ou a esfera de metal que rola pelo chão e guia o herói, é a ligação com a esfera instintiva básica, a intuição que pode nos guiar quando a consciência falha. A atitude dele e de seu povo é exemplar: obedece aos desígnios do oráculo, aceita a sua morte e parte para não mais voltar, corta o seu cabelo e deixa a sua gente. Jung gostava de citar uma anedota rabínica interessante, pois um famoso rabino, ao ser indagado sobre o motivo do altíssimo não mais se manifestar diretamente aos homens, ou operar milagres, respondia que os homens “não sabem mais se curvar”. Nesse sentido a atitude de Ashitaka é exemplar, ele se curva e parte, aceita como inevitável o lado irracional da vida, como inalienável, e assim ele cruza o limiar e ruma em direção ao desconhecido, assim ele começa a se tornar um herói.

Nesse ponto é preciso que se faça uma ressalva, existe aqui um dado fundamental, Ashitaka é premido pela necessidade, ele não brinca com as forças que desconhece, ou tenta moldá-las a sua vontade, não há aqui contrafação, mas dura necessidade. Nosso herói, que estava isolado, deve agora desbravar os caminhos até encontrar a origem da bola de ferro que dilacerou o javali.

Ashitaka é um príncipe, precisamos compreender o que isso significa em termos simbólicos. Ele não tem irmãos do sexo masculino, mas uma irmã. A princípio eu imaginei que a sua partida significava o declínio definitivo de seu povo, mas em uma civilização matrifocal, a permanência de sua irmã pode indicar que nem tudo está perdido, mesmo com o desequilíbrio que causa a sua partida, o elemento masculino e jovem se perde. Em diversas histórias há um velho rei e o príncipe mais novo junto de seus irmãos devem realizar provas para mostrar quem é o mais digno de assumir o trono. Como se pode apreender pela comparação da figura do rei nas mais variadas culturas, ele incorpora um princípio divino, disso a história nos dá exemplos eloquentes desde os Faraós do Egito, até a teoria do direito divino dos reis de governar defendida na Europa absolutista por séculos. O monumental trabalho de Frazer possui inúmeros exemplos desse fato. Em termos coletivos o rei geralmente representa uma atitude coletiva. Não existe, no entanto, um rei no início da história. Em certo sentido, Ashitaka lembra o rei pescador da lenda do Graal, ferido e aleijado, mas diferente dele, é o protagonista de sua redenção, e sua ferida não o deixa incapacitado, mas, paradoxalmente, lhe traz um poder insuspeito para levar adiante a sua jornada.

Essas características tornam Ashitaka um herói bastante singular, em sua busca pela montanha de ferro onde habitava o javali. Ao abandonar a sua tribo, se depara com o mundo da iniciativa masculina, em seu aspecto mais aterrador, guerreiros atacando e matando uma população indefesa de lavradores. Ao testemunhar essa violência, a ferida em seu braço imediatamente reage, lhe conferindo força descomunal para sobrepujar esses agressores. Jung, certa feita, afirmou que sem a trave em nosso olho não seríamos capazes de enxergar o cisco no olho do próximo, mas insistia na senda do autoconhecimento, pois sem isso, corremos o risco de supor que todos os ciscos são traves. Só somos capazes de reconhecer no outro aquilo que existe em nosso próprio psiquismo, e, muitas vezes, só somos capazes de reconhecer esses conteúdos nos outros. A projeção, de acordo com Jung, é um fenômeno inconsciente e automático por meio do qual um conteúdo inconsciente para o sujeito é projetado num objeto, e, é fundamental sublinhar, esse processo faz parecer que o conteúdo projetado pertence ao objeto. Ashitaka, por meio de sua ferida, reconhece o horror que presencia, ele reconhece o ódio e a dor, pois ele mesmo é atravessado por esses sentimentos.

Há uma sutil, porém importante, diferença entre Ashitaka e o Javali que o atacou. Ele não perde a consciência, enquanto o javali estava possuído pelo ódio e o medo da morte. Reparem que a grande loba branca, mesmo ferida, reconhece a morte como uma parte integrante da vida e não a teme, e isso previne que a bala de ferro que a consume lentamente apodreça sua alma. Medo e desejo são as polaridades que nos mantém em movimento no eterno jogo de Maia, são, ao mesmo tempo os guardiões da entrada do templo, que precisamos superar para alcançar o deus que ali reside. Possessão, em termos psicológicos, é ser assimilado a uma imagem arquetípica numinosa. O arquétipo, como o define Jung, é também uma experiência emocional. Temos que nos lembrar que as emoções estão entre as coisas que nos acontecem, nós não as controlamos, podemos, no máximo, suprimi-las por algum tempo. Por trás de toda emoção arrebatadora há um sentido, uma imagem da alma que raramente podemos discernir, e, é esse discernimento, do sentido e significado do ódio que ele busca em sua jornada. Sem isso, permanecendo apenas no plano das emoções, Ashitaka seria dilacerado pelos conteúdos inconscientes, como o deus javali.

Gostaria de trazer dois paralelos à figura de Ashitaka, e me deter um pouco nesses dois paralelos, principalmente por se tratar de uma plateia em que talvez existam futuros analistas. 

O primeiro paralelo é o mito de Quíron, do curador ferido. Poderíamos utilizar esse mesmo epíteto a Ashitaka, ao final do filme ele cura os leprosos e põe fim a uma disputa sangrenta. Muitos analistas Junguianos consideram esse um mito lindo, e ele não o é, é um mito terrível, com aterradoras implicações morais. É um mito que é usado como alegoria da clínica, e do papel do analista, mas de uma maneira pueril e despreocupada, que, ao invés de implicar moralmente o analista, parece ter o efeito oposto, o sidera das terríveis agruras de sua delicada profissão.

Quiron (Χείρων), que em grego significa mão, e ele, de fato era muito habilidoso. Diferente dos demais centauros, de natureza selvagem e arrojada, era inteligente e gentil, versado em medicina e muito culto. Sua origem era diversa da origem dos demais centauros, filhos do intercurso sexual entre uma nuvem e o infame rei Ixion. Ele era filho de Cronos que, na forma de um cavalo, seduzira a ninfa Philyra – filha de Oceanos e Tétis. Quiron vivia no monte Pelion com sua esposa a ninfa Chariclo, que lhe deu três filhas e um filho. Ele era um curandeiro, astrólogo e tutor de numerosos heróis. Sendo filho de um titã, Quiron era imortal. Acontece que um dia Héracles, foi almoçar com o centauro e, durante o almoço, um frasco de vinho sagrado, presente de Dioníso, foi aberto, o que atraiu os demais centauros que atacaram Héracles. O filho de Zeus os derrotou com flechas envenenadas pelo sangue da Hidra de Lerna. Quiron foi ferido por uma dessas setas, e, mesmo sendo um grande curandeiro, não pode se recuperar do veneno e, nem tampouco, morrer, pois era imortal. Restava-lhe, apenas, sofrer sem poder esperar pelo alívio da morte.

O sofrimento do centauro Quiron é normalmente utilizado como alegoria para o papel de analista. Isso é repetido sempre e de novo, mas não passa de jargão, sendo algo bastante incompreendido. Jung disse certa vez que a empatia não nos leva muito longe, e, no que diz respeito à clínica junguiana, Franz afirmou, que não se trata de empatia no que se refere ao tratamento, mas de simpatia, no sentido em que o analista sofre o processo junto do paciente. Jung chegou mesmo a afirmar que o analista deveria estar disposto, em determinados momentos, a sacrificar e posteriormente reconstruir sua visão de mundo caso isso fosse requerido em algum caso. Quando, no decorrer do tratamento, o analista “fere” o paciente, ele só pode fazê-lo ao ferir-se a si mesmo, pois só pode discernir em seu paciente o que traz em seu psiquismo. Se for alguém com algum desenvolvimento da personalidade, o analista saberá que, ao observar os abismos da alma das pessoas aos seus cuidados estará vendo em espelho os abismos de sua própria alma e o horror que contemplar ali é algo que irá feri-lo, tanto quanto o veneno feriu o imortal Quiron. Ashitaka foi ferido, não sendo imortal, foi ferido de morte, e sua única possibilidade de escapatória foi abrir mão de tudo e ser capaz de testemunhar o ódio sem se deixar envolver por ele, sem ser por ele possuído.

O processo de individuação é algo terrivelmente penoso, pois ele demanda grandes sacrifícios, e não pode ser levado a cabo por um ato de vontade apenas, ele é Deo concedente. Ao falar dos tipos, Jung ensinava que existe uma função superior, a principal função da consciência, que caracteriza a nossa atitude, que dá o colorido particular de nossa adaptação ao mundo e que nos permite viver sem muitos embaraços, certamente algo precioso. Pois o processo de individuação exige, em determinado momento, o sacrifício dessa função que nos é tão cara, o que nos lança em completo desamparo. E, por maior que venha a ser a nossa consciência, ela sempre será lacunar, do contrário, sem essa ferida, perderíamos o contato com o fato psicológico real, e nossa vida secaria. Jamais seremos senhores em nossa própria casa, mas podemos, ao menos, descobrir com quem dividimos essa casa e, quiçá, estabelecer uma boa relação com esse ser misterioso que parece tecer nossos sonhos e nosso destino.

O segundo paralelo está na obra de Franz, em seu A Sombra e o Mal nos Contos de Fadas. Trata-se de uma história chinesa de fantasmas. Nesse país diz-se que existem muitos tipos de fantasmas, mas os piores são os das pessoas que se enforcam. Na China, muitas mulheres camponesas, maltratadas por suas sogras, sobrecarregadas de trabalho e famintas findavam por se enforcar e se tornam fantasmas. Os fantasmas dessas mulheres precisam induzir outra mulher a se enforcar, do contrário não podem partir para o além e renascer, por isso buscam uma substituta que induzem a se enforcar.

Um soldado acabara de passar pelos seus primeiros exames e estava voltando para a capital, no penoso caminho de volta teve que se abrigar em um velho templo vazio e arruinado. Ao fechar os olhos para dormir ele ouviu um ruído, sentiu um vento gelado em seu rosto, e pôde observar uma mulher deixando o templo furtivamente, trajando uma roupa vermelha rota, suja e com o rosto muito pálido. Ele fingiu estar dormindo não se assustando com a aparição, percebeu que havia uma corda pendurada no braço da mulher e notou tratar-se do fantasma de uma suicida. Cautelosamente ele a seguiu até que ela entrou numa pobre choupana, lá uma jovem mulher chorava enquanto balançava o berço de um bebê. O fantasma estava em uma viga, mostrava a corda ao redor de seu pescoço, e a jovem lhe disse “você diz que o melhor é morrer! Eu morrerei, mas não consigo me separar do meu filho”, mas o fantasma insistia.

 Finalmente a mulher disse “está bem, eu me decidi a morrer”. Ela abriu a porta do armário, pintou-se, vestiu roupas novas, subiu num banquinho e começou a amarrar um cinto na viga. O soldado quebrou a janela, entrou na casa e salvou a mulher. Ele viu que a corda do fantasma ainda estava pendurada na viga, mas ela desaparecera. Ele apanhou a corda, repreendeu a mulher por sua atitude e retornou ao templo. No meio do caminho o fantasma reapareceu e exigiu sua corda de volta, ou não poderia seduzir para a morte outra mulher para tomar o seu lugar, mas o soldado enroscou a corda no braço e bradou “saia do meu caminho!” o fantasma assumiu um aspecto diabólico e avançou contra o soldado, que o golpeou, mas feriu o seu próprio nariz, que sangrou. Como fantasmas não gostam de sangue ele atirou algumas gotas nela, que assustada se afastou alguns passos e começou a amaldiçoá-lo. Isso prosseguiu por toda a noite. 

Quando o dia raiou, os aldeões foram agradecer ao soldado por ter salvado a garota e ele lhes contou o que tinha acontecido. Todos puderam ver a marca da corda que afundara na carne formando um anel vermelho.

O braço de Ashitaka ostenta a marca da ferida que ele recebeu do javali, ao ser possuído pelo mal. Psicologicamente, o javali foi tomado pela unilateralidade, por um único modelo de comportamento, ele só sabia destruir e corromper. A possessão é um mal terrível, mas Nosso herói não é possuído, ele possui discernimento e se coloca frontalmente contra a atitude de todos os envolvidos no conflito, deuses, soldados e as mulheres. Ao invés de ser possuído pelo mal ele parece ser capaz de, em certa medida, integrá-lo. É interessante perceber algo na atitude das mulheres da vila de metalúrgicos, representada por sua líder, pois, me parece, há um certo tipo de Eros feminino inconsciente ali que se manifesta na consciência como poder. A separação da natureza estabelece um conflito, sangrento e terrível, o mais aterrador desse conflito é ver mulheres lutando contra a natureza e seus instintos, ao assumir o comando, elas passam a agir exatamente como os homens, deixando de lado sua feminilidade. Há aqui uma mensagem preciosa para o nosso tempo.

Em certo sentido, Ashitaka pode ser encarado, como um símbolo do espírito, um símbolo do self, e, como tal, tem o poder de unir os opostos. Mas nesse ponto, a mensagem do filme é dúbia, os deuses morrem quase todos, os mortais também sofrem perdas imensas e a floresta é devastada depois da morte do deus da floresta, e Ashitaka não se une a princesa mononoke. Por mais que ele possa ser encarado como um símbolo de união, essa união não ocorre, ele e sua donzela permanecem separados, apesar de terem tido que agir juntos para salvar a todos. No final, a morte do deus da floresta iria destruir a todos, sem exceção, sem escolher um lado. Em certo sentido, os javalis sucumbem a algo similar a uma das tentações de Jesus no deserto, em Mateus 4: 5-7

Então o diabo o levou à cidade santa, colocou-o na parte mais alta do templo e lhe disse:

"Se você é o Filho de Deus, jogue-se daqui para baixo. Pois está escrito: ‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, e com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra’".
Jesus lhe respondeu: "Também está escrito: ‘Não ponha à prova o Senhor, o seu Deus’"
Os javalis não reconheciam no deus doador de vida igualmente o senhor da morte, e incorriam nesse pecado, de “tentar a deus”. Novamente, há aqui algo de importância capital para a nossa sociedade, pois muito do que é a espiritualidade cristã, no que concerne as teorias da prosperidade, parecem se resumir a esse pecado. Há, igualmente, algo peculiar a sensibilidade japonesa nesse deus, pois ele reúne em si vida e morte, como Izanami, diferente da sensibilidade cristã e sua cisão típica representada pela privatio boni.

A morte de deus e a destruição da natureza caminham de mãos dadas e, no amargo fim, não importará muito de que lado estamos, a tragédia virá para todos. Por um breve instante, Ashitaka e a princesa se uniram, e com essa união salvaram muitas vidas, mas seguiram seus caminhos separados, quando irão novamente se encontrar? Em qual alma irá acontecer essa esperada união? Muito mais poderia ser dito, e, por certo, uma análise mais pormenorizada poderia ser feita, porém, em virtude da exiguidade do tempo, eu termino aqui, salientando que esse esforço não passa de um esboço.


2 comentários:

  1. Caramba, que análise sensacional! Acabei de assistir o filme e já senti que tinha algo de especial logo no começo. Li o texto mas ptecisarei ler novamente pois está muito bem fundamentado gostei bastante. Um detalhe sobre a partida de Ashitaka da vila é que a anciã diz que pelas tradições eles não poderiam se despedir dele, fiquei agora com o simbolismo que isso representaria e já aproveitando o tema, o imperador e seu súdito, um com o desejo pela cabeça do espírito da floresta desejando imortalidade e o outro indo até o limite das consequências para cumprir sua missão, que significados esses personagens representariam no mito, que lições tiraríamos deles? Desde já, parabéns pelo trabalho

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    1. Acredito que os dois tinham medo da morte e não aceitavam o Deus da Vida e da Morte em sua totalidade. A vida e a morte são dois lados do mesmo ciclo, você não pode ter um sem o outro. O súdito que você menciona é o trickster, que não acho q ele esteja querendo cumprir uma missão mas age por interesse próprio. A imperatriz também é algum arquétipo que não identifiquei totalmente, mas simboliza poder e ambição como forças destrutivas. Eles tem que morrer (e renascer) por causa da sua unilateralidade. Lembrando que tudo pode ser visto como diferentes aspectos de uma única psique.

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