Esta
é a segunda vez em que vou falar sobre o filme Monnoke Hime (もののけ姫), em português, princesa
Mononoke, de Hayao Miayzaki. Eu não gosto de me repetir, e ninguém pode me
acusar de falar sempre sobre a mesma coisa (hoje mesmo, mais tarde vou falar
sobre games e filosofia e amanhã sobre zumbis), mas, confesso, que na primeira
vez em que fui convidado a falar sobre ele, o meu temperamento extrovertido não
me deixou fazer algo lá muito bom ao ver um auditório com apenas 3 pessoas.
Quando gentilmente me convidaram para tratar de algum filme sob a ótica da
psicologia complexa de Jung, este foi o primeiro que me ocorreu, por querer ter
a oportunidade de debatê-lo novamente, pelas suas qualidades intrínsecas e, por
um derradeiro motivo, que deixarei claro no decorrer da minha análise.
Como
estou falando para estudantes interessados em psicologia complexa, um tema que
é desconhecido, ou, quando muito, mal entendido, é preciso que eu inicie a
minha fala explicando o método de interpretação dessa ciência. Ao falar sobre o
método, que Jung chamava de filológico, ou seja, o método de amplificação,
costumo me reportar ao livro de M. L. Von Franz A Interpretação dos Contos de Fada, onde ela principia justamente
por expor este ponto. O método possui 3 passos, o primeiro consiste em
amplificar o tema a ser estudado com o máximo possível de paralelos. Jung dizia
que era preciso elencar todos os paralelos existentes, coisa que ele fazia,
como seus textos demonstram. Franz era um pouco mais compreensível e se
contentava com apenas 2000 paralelos dentre os existentes. Eu considerava, até
a bem pouco tempo, que era bem conhecido o fato de Jung ter abandonado a
associação livre de Freud – coisa de que tratei em um texto de viés mais
epistemológico e que estará em meu próximo livro – mas descobri que não é esse
o caso, por isso vou me estender um pouco na explicação da amplificação, que
está diretamente ligada ao abandono do método Freudiano.
Para
Jung, a psicologia faz uso do ignotium
per ignotius explicando algo desconhecido por algo ainda mais
desconhecido, já que não pode reconstituir o fenômeno observado em outro meio,
como a física o faz por intermédio da matemática. A psicologia, ao fazer uso do
método das ciências naturais, o método descritivo, reconstrói o fenômeno
observado no mesmo meio. Nesse sentido, todo processo psíquico, na medida em
que pode ser observado já constitui em si teoria, ou seja, uma concepção, a teoria acerca desse
fenômeno observado não passa de uma variante dessa concepção. Disso decorre que
a psicologia é um conhecimento “no psíquico”. A interpretação deve ser uma variação da mesma concepção (em outras
palavras amplificação) do contrário ela é uma compensação ou polêmica.
A interpretação que se justifica cientificamente não é apenas uma tautologia,
mas uma ampliação (algo que amplia o sentido para formar uma concepção mais
geral). Nesse ponto é que a psicologia está situada além da ciência natural. O
método de Freud é abandonado ao se perceber que qualquer imagem que surja, num
sonho, por exemplo, já é, por si, uma concepção inequívoca e suficientemente
positiva, dessa forma, não se deve empregar quaisquer outros pontos de vista
que não sejam manifestamente indicados pelo conteúdo. Além disso, Jung era
paradoxal em seu método ao adotar simultaneamente as perspectivas: qualitativa
causal e quantitativa final. Compreendendo finalidade como a tensão
psicológica imanentemente dirigida a um objetivo futuro. A causalidade tende a
reduzir as imagens a algo simples e elementar. Para o ponto de vista da
finalidade, por outro lado, riqueza de sentido reside na diversidade das
expressões simbólicas, e não na uniformidade de significado. Vê-se assim, com
clareza, que não se trata de alegoria psicológica ou de outra sorte, pois a
finalidade não reconhece significados fixos dos símbolos. Não se trata, como
tolamente se faz com frequência, em simplesmente dizer que isto é a anima e
aquilo é a sombra, tal atitude não é científica e não possui sustentação epistêmica,
não passa de uma vulgata do opus de
Jung, e espero que, ao menos esse ponto, fique claro.
O segundo passo é compreender as funções desempenhadas por essas imagens e
seu contexto específico, bem como as mutações que sofrem no decorrer da
narrativa e suas relações com as demais imagens. Nesse ponto, assim como se dá
com a análise dos sonhos, é importante discernir as dramatis personae
iniciais, bem como o quando e onde da história e, perceber como isso
muda, ou permanece o mesmo, no decorrer da história até seu final. Esse
dinamismo próprio das imagens simbólicas que vamos analisar é fundamental. Precisamos
compreende-lo, pois toda interpretação é um obscurecimento da luz original dos
símbolos que estamos estudando. Ainda quanto a esse ponto, cito textualmente M.
L. Von Franz:
Podemos considerar a questão sob um outro aspecto, o da variedade infinita de símbolos. Se chegarmos à conclusão apressada de que certos símbolos representam o Self, poderemos estar certos em relação a um determinado motivo ou sonho, mas não estaremos fazendo uma interpretação mitológica e geralmente válida. Mesmo que, tecnicamente falando, isso não seja errado. Uma afirmação tão generalizante é destituída de sentido. Um símbolo do Self não equivale a outro. É portanto necessário precisar nosso pensamento e nos questionarmos sobre as diferenças existentes entre símbolos como a Mandala, o Ovo, o Diamante, a Esfera de ouro, o Tesouro a ser descoberto, a Criança, o Herói ou Heroína etc., cada um deles representando um aspecto do Self. A primeira situação que pensamos é que o Herói é um ser humano, ao passo que a esfera e outros objetos não o são, o que parece uma afirmação banal, mas que é preciso compreender situando-a em seu justo lugar. Se, em certos materiais, a totalidade aparece sob a forma de símbolos impessoais como uma árvore, ou semi-humanos como o Herói, a correspondência se dá em relação a qual diferença psicológica? (2010, p.41)
O
derradeiro passo é o “mas
psicologicamente”, aonde, aí sim, vem a interpretação em termos da ciência
psicológica. É preciso ter em mente, e eu devo insistir nesse ponto com certa
veemência, que o único critério de validade de uma hipótese em psicologia
complexa é o seu valor heurístico, isto é, explicativo. Creio que convém
salientar esse termo único. É preciso
que a interpretação nos esclareça sobre algo dos símbolos que estamos
estudando, que ela acrescente algo ao conhecimento
sobre o homem e que, traga para a nossa consciência, algo que antes era apenas
obscuramente pressentido, enriquecendo-a com esses conteúdos, integrando-os a
atitude consciente. Nenhuma interpretação pode se arvorar a ter uma palavra
final, principalmente pelo fato dela depender da equação pessoal daquele que
interpreta, nesse caso, a minha. É preciso que se estabeleça uma verdade, mas é
mister recordar que não se pode
estabelecer “a verdade”. Quando reconheço os meus próprios complexos e a
interferência de meu inconsciente no processo de interpretação, eu posso
expressar a minha verdade, visto que, ao tratar de um problema coletivo, também
sou direta ou indiretamente afetado por ele. Como veremos, esse é um ponto
fundamental da bela mensagem desse filme.
O filme principia nos mostrando a paz bucólica de um
vilarejo isolado e distante, que se vê perturbada pela aparição de um monstro
de dor e raiva, que ataca cegamente qualquer um, de maneira indiscriminada.
Nesse ponto somos apresentados a Ashitaka, e a sua contraparte animal, Yakul.
Para salva sua vila, e a sua irmã, ele luta contra o monstro. Ashitaka apela
aquele deus desconhecido que dê meia volta, mas a fera coberta por uma
substância viscosa que se move como se fossem vermes, ignora esses pedidos,
tomada pela fúria. Ele luta, usando seu arco e mata a fera, mas é mortalmente
ferido em seu braço, envenenado pela mesma loucura que dominava o deus
desconhecido, um ódio incontrolável. Ao morrer, percebe-se que se tratava de um
javali, um deus da montanha.
Nesse ponto já se revela um dos aspectos fundamentais
dessa obra. Ashitaka e seu povo são proscritos, uma raça antiga que foi
combatida pelos japoneses e expulsa para as paragens mais remotas até serem
tidos como extintos. São também um povo decadente, Ashitaka é seu último
príncipe, e, segundo a velha sacerdotisa, deve partir para não mais voltar,
pois deve ir ao lugar onde a fera vivia e testemunhar o que acontece com olhos
mais ingênuos, não maculados pela raiva, que agora o consome lentamente. A
mensagem aqui é eloquente: ninguém está realmente isolado. Ao realizar uma
interpretação, temos que nos recordar que o enredo é sempre uma resposta a uma
situação consciente específica. Nossa sociedade se caracteriza por um profundo
individualismo, e por um egoísmo crescente. As classes mais abastadas assistem
por detrás de seus muros a violência cometida pela polícia contra os mais
pobres, assiste a guerras que assolam lugares distantes como a África ou o
Oriente Médio, e se julgam a salvo. Mas vivemos todos nesse mesmo mundo,
partilhamos um pequeno grão de poeira no cosmos e, nenhuma muralha, pode nos
proteger da escuridão em nós mesmos, que, por meio da projeção de conteúdos
inconscientes para o sujeito, parece sempre pertencer a outrem. Tat Tvam Asi, gostava de repetir
Campbell “tu és isto”. Não é à toa que Jung chamou o inconsciente, e eu sempre
gosto de lembrar dessa definição, de dado irracional existencial inalienável.
Nós podemos nos livrar de nossos amigos, colegas, professores, família, ou até
tentar fugir da sociedade, ir para o mato, mas não podemos descartar a nós
mesmos.
Campbell falava de quatro funções do mito, uma delas era a
função sociológica, ou seja, de que o mito visava dar validade a uma
determinada sociedade em um determinado tempo, mas isso também significa que,
assim como fazemos parte dessa sociedade, ela também faz parte de nós e, em
algum nível, de alguma maneira, seja de uma forma individual ou pela via
coletiva, precisamos encontrar alguma harmonia com esta sociedade em que
nascemos. Não conseguir isso é construir outro muro além daquele que nos separa
dos perigos da rua, um muro que está dentro de nós, nos condenando a uma cisão
neurótica e a pagar o preço por uma tal divisão. Eu creio, e digo isso com
convicção, que o preço a se pagar por demolir esse muro, o preço a se pagar por
sermos quem somos, é ainda mais alto, mas a recompensa é bem maior, o tesouro é
o sentido que podemos achar por detrás desses tijolos que nos separam de nós
mesmos e, que ao nos separar de daquilo que somos, nos separa de nosso próximo.
Isso me recorda de uma divertida historieta zen, estava
Ananda meditando nas cercanias de uma floresta, mas o canto dos pássaros o
distraia, incomodado foi meditar às margens de um caudaloso rio, mas aí,
novamente, ele se sentiu incomodado, dessa vez pelo ruído dos peixes, até que,
por fim, comeu todas as aves e peixes e foi meditar no interior de uma caverna,
mas ali, teve dor de barriga e não conseguiu meditar. Em outra historieta, um
jovem acólito, sempre que sentava-se para fazer zazen era incomodado por uma
aterradora aranha gigante, e por isso não podia meditar. Preocupado ele
procurou seu mestre e narrou a insólita história, como solução o monge mais
velho lhe deu um pincel de caligrafia e lhe disse que, assim que a aranha
monstruosa surgisse, ele deveria pintar um círculo no ventre da criatura. E
assim ele o fez, e o bicharoco realmente sumiu e ele pode meditar em paz, mas,
assim que terminou sua meditação, percebeu que existia um círculo pintado em
seu ventre.
Ashitaka, que deve testemunhar com olhos livres do ódio, é
uma variação mais espiritualizada e superior do herói tolo. O tolo, nos ensina
Franz, simboliza o caráter genuíno básico, a integridade da personalidade.
Mesmo ferido de morte, mesmo envenenado pelo ódio, ele permanece íntegro, é
capaz de atravessar os muros e ver com olhos mais claros. Nele o eros prevalece, e onde existe eros não há poder.
Ashitaka é um príncipe, o último de sua raça, e mesmo
assim, ao ouvir o oráculo, ele deve deixá-los e condená-los a sua derrocada
final. O oráculo nesse filme, como as penas, ou o novelo, ou a esfera de metal
que rola pelo chão e guia o herói, é a ligação com a esfera instintiva básica,
a intuição que pode nos guiar quando a consciência falha. A atitude dele e de
seu povo é exemplar: obedece aos desígnios do oráculo, aceita a sua morte e
parte para não mais voltar, corta o seu cabelo e deixa a sua gente. Jung
gostava de citar uma anedota rabínica interessante, pois um famoso rabino, ao
ser indagado sobre o motivo do altíssimo não mais se manifestar diretamente aos
homens, ou operar milagres, respondia que os homens “não sabem mais se curvar”.
Nesse sentido a atitude de Ashitaka é exemplar, ele se curva e parte, aceita
como inevitável o lado irracional da vida, como inalienável, e assim ele cruza
o limiar e ruma em direção ao desconhecido, assim ele começa a se tornar um
herói.
Nesse ponto é preciso que se faça uma ressalva, existe
aqui um dado fundamental, Ashitaka é premido pela necessidade, ele não brinca
com as forças que desconhece, ou tenta moldá-las a sua vontade, não há aqui
contrafação, mas dura necessidade. Nosso herói, que estava isolado, deve agora
desbravar os caminhos até encontrar a origem da bola de ferro que dilacerou o
javali.
Ashitaka é um príncipe, precisamos compreender o que isso
significa em termos simbólicos. Ele não tem irmãos do sexo masculino, mas uma
irmã. A princípio eu imaginei que a sua partida significava o declínio
definitivo de seu povo, mas em uma civilização matrifocal, a permanência de sua
irmã pode indicar que nem tudo está perdido, mesmo com o desequilíbrio que
causa a sua partida, o elemento masculino e jovem se perde. Em diversas
histórias há um velho rei e o príncipe mais novo junto de seus irmãos devem
realizar provas para mostrar quem é o mais digno de assumir o trono. Como se
pode apreender pela comparação da figura do rei nas mais variadas culturas, ele
incorpora um princípio
divino, disso a história nos dá exemplos eloquentes desde os Faraós do Egito,
até a teoria do direito divino dos reis de governar defendida na Europa
absolutista por séculos. O monumental trabalho de Frazer possui inúmeros
exemplos desse fato. Em termos coletivos o rei geralmente representa uma
atitude coletiva. Não existe, no entanto, um rei no início da história. Em
certo sentido, Ashitaka lembra o rei pescador da lenda do Graal, ferido e
aleijado, mas diferente dele, é o protagonista de sua redenção, e sua ferida
não o deixa incapacitado, mas, paradoxalmente, lhe traz um poder insuspeito
para levar adiante a sua jornada.
Essas
características tornam Ashitaka um herói bastante singular, em sua busca pela
montanha de ferro onde habitava o javali. Ao abandonar a sua tribo, se depara
com o mundo da iniciativa masculina, em seu aspecto mais aterrador, guerreiros
atacando e matando uma população indefesa de lavradores. Ao testemunhar essa
violência, a ferida em seu braço imediatamente reage, lhe conferindo força
descomunal para sobrepujar esses agressores. Jung, certa feita, afirmou que sem
a trave em nosso olho não seríamos capazes de enxergar o cisco no olho do
próximo, mas insistia na senda do autoconhecimento, pois sem isso, corremos o
risco de supor que todos os ciscos são traves. Só somos capazes de reconhecer
no outro aquilo que existe em nosso próprio psiquismo, e, muitas vezes, só
somos capazes de reconhecer esses conteúdos nos
outros. A projeção, de acordo com Jung, é um fenômeno inconsciente e automático
por meio do qual um conteúdo inconsciente para o sujeito é projetado num
objeto, e, é fundamental sublinhar, esse processo faz parecer que o conteúdo
projetado pertence ao objeto. Ashitaka,
por meio de sua ferida, reconhece o horror que presencia, ele reconhece o ódio
e a dor, pois ele mesmo é atravessado por esses sentimentos.
Há
uma sutil, porém importante, diferença entre Ashitaka e o Javali que o atacou. Ele
não perde a consciência, enquanto o javali estava possuído pelo ódio e o medo
da morte. Reparem que a grande loba branca, mesmo ferida, reconhece a morte
como uma parte integrante da vida e não a teme, e isso previne que a bala de
ferro que a consume lentamente apodreça sua alma. Medo e desejo são as
polaridades que nos mantém em movimento no eterno jogo de Maia, são, ao mesmo
tempo os guardiões da entrada do templo, que precisamos superar para alcançar o
deus que ali reside. Possessão, em termos psicológicos, é ser assimilado a uma
imagem arquetípica numinosa. O arquétipo, como o define Jung, é também uma
experiência emocional. Temos que nos lembrar que as emoções estão entre as
coisas que nos acontecem, nós não as controlamos, podemos, no máximo,
suprimi-las por algum tempo. Por trás de toda emoção arrebatadora há um
sentido, uma imagem da alma que raramente podemos discernir, e, é esse
discernimento, do sentido e significado do ódio que ele busca em sua jornada.
Sem isso, permanecendo apenas no plano das emoções, Ashitaka seria dilacerado
pelos conteúdos inconscientes, como o deus javali.
Gostaria
de trazer dois paralelos à figura de Ashitaka, e me deter um pouco nesses dois
paralelos, principalmente por se tratar de uma plateia em que talvez existam
futuros analistas.
O
primeiro paralelo é o mito de Quíron, do curador ferido. Poderíamos utilizar
esse mesmo epíteto a Ashitaka, ao final do filme ele cura os leprosos e põe fim
a uma disputa sangrenta. Muitos analistas Junguianos consideram esse um mito
lindo, e ele não o é, é um mito terrível, com aterradoras implicações morais. É
um mito que é usado como alegoria da clínica, e do papel do analista, mas de
uma maneira pueril e despreocupada, que, ao invés de implicar moralmente o
analista, parece ter o efeito oposto, o sidera
das terríveis agruras de sua delicada profissão.
Quiron
(Χείρων), que em grego significa mão, e ele, de fato era muito habilidoso.
Diferente dos demais centauros, de natureza selvagem e arrojada, era
inteligente e gentil, versado em medicina e muito culto. Sua origem era diversa
da origem dos demais centauros, filhos do intercurso sexual entre uma nuvem e o
infame rei Ixion. Ele era filho de Cronos que, na forma de um cavalo, seduzira
a ninfa Philyra – filha de Oceanos e Tétis. Quiron vivia no monte Pelion com
sua esposa a ninfa Chariclo, que lhe deu três filhas e um filho. Ele era um
curandeiro, astrólogo e tutor de numerosos heróis. Sendo filho de um titã,
Quiron era imortal. Acontece que um dia Héracles, foi almoçar com o centauro e,
durante o almoço, um frasco de vinho sagrado, presente de Dioníso, foi aberto,
o que atraiu os demais centauros que atacaram Héracles. O filho de Zeus os
derrotou com flechas envenenadas pelo sangue da Hidra de Lerna. Quiron foi
ferido por uma dessas setas, e, mesmo sendo um grande curandeiro, não pode se
recuperar do veneno e, nem tampouco, morrer, pois era imortal. Restava-lhe,
apenas, sofrer sem poder esperar pelo alívio da morte.
O
sofrimento do centauro Quiron é normalmente utilizado como alegoria para o
papel de analista. Isso é repetido sempre e de novo, mas não passa de jargão,
sendo algo bastante incompreendido. Jung disse certa vez que a empatia não nos
leva muito longe, e, no que diz respeito à clínica junguiana, Franz afirmou,
que não se trata de empatia no que se refere ao tratamento, mas de simpatia, no
sentido em que o analista sofre o processo junto
do paciente. Jung chegou mesmo a afirmar que o analista deveria estar disposto,
em determinados momentos, a sacrificar e posteriormente reconstruir sua visão
de mundo caso isso fosse requerido em algum caso. Quando, no decorrer do
tratamento, o analista “fere” o paciente, ele só pode fazê-lo ao ferir-se a si
mesmo, pois só pode discernir em seu paciente o que traz em seu psiquismo. Se
for alguém com algum desenvolvimento da personalidade, o analista saberá que,
ao observar os abismos da alma das pessoas aos seus cuidados estará vendo em
espelho os abismos de sua própria alma e o horror que contemplar ali é algo que
irá feri-lo, tanto quanto o veneno feriu o imortal Quiron. Ashitaka foi ferido,
não sendo imortal, foi ferido de morte, e sua única possibilidade de
escapatória foi abrir mão de tudo e ser capaz de testemunhar o ódio sem se
deixar envolver por ele, sem ser por ele possuído.
O
processo de individuação é algo terrivelmente penoso, pois ele demanda grandes
sacrifícios, e não pode ser levado a cabo por um ato de vontade apenas, ele é Deo concedente.
Ao falar dos tipos, Jung ensinava que existe uma função superior, a principal
função da consciência, que caracteriza a nossa atitude, que dá o colorido
particular de nossa adaptação ao mundo e que nos permite viver sem muitos
embaraços, certamente algo precioso. Pois o processo de individuação exige, em
determinado momento, o sacrifício dessa função que nos é tão cara, o que nos
lança em completo desamparo. E, por maior que venha a ser a nossa consciência,
ela sempre será lacunar, do contrário, sem essa ferida, perderíamos o contato
com o fato psicológico real, e nossa vida secaria. Jamais seremos senhores em
nossa própria casa, mas podemos, ao menos, descobrir com quem dividimos essa
casa e, quiçá, estabelecer uma boa relação com esse ser misterioso que parece
tecer nossos sonhos e nosso destino.
O
segundo paralelo está na obra de Franz, em seu A Sombra e o Mal nos Contos de Fadas. Trata-se de uma história
chinesa de fantasmas. Nesse país diz-se que existem muitos tipos de fantasmas,
mas os piores são os das pessoas que se enforcam. Na China, muitas mulheres
camponesas, maltratadas por suas sogras, sobrecarregadas de trabalho e famintas
findavam por se enforcar e se tornam fantasmas. Os fantasmas dessas mulheres
precisam induzir outra mulher a se enforcar, do contrário não podem partir para
o além e renascer, por isso buscam uma substituta que induzem a se enforcar.
Um
soldado acabara de passar pelos seus primeiros exames e estava voltando para a
capital, no penoso caminho de volta teve que se abrigar em um velho templo
vazio e arruinado. Ao fechar os olhos para dormir ele ouviu um ruído, sentiu um
vento gelado em seu rosto, e pôde observar uma mulher deixando o templo
furtivamente, trajando uma roupa vermelha rota, suja e com o rosto muito
pálido. Ele fingiu estar dormindo não se assustando com a aparição, percebeu
que havia uma corda pendurada no braço da mulher e notou tratar-se do fantasma
de uma suicida. Cautelosamente ele a seguiu até que ela entrou numa pobre
choupana, lá uma jovem mulher chorava enquanto balançava o berço de um bebê. O fantasma
estava em uma viga, mostrava a corda ao redor de seu pescoço, e a jovem lhe
disse “você diz que o melhor é morrer! Eu morrerei, mas não consigo me separar
do meu filho”, mas o fantasma insistia.
Finalmente a mulher disse “está bem, eu me
decidi a morrer”. Ela abriu a porta do armário, pintou-se, vestiu roupas novas,
subiu num banquinho e começou a amarrar um cinto na viga. O soldado quebrou a
janela, entrou na casa e salvou a mulher. Ele viu que a corda do fantasma ainda
estava pendurada na viga, mas ela desaparecera. Ele apanhou a corda, repreendeu
a mulher por sua atitude e retornou ao templo. No meio do caminho o fantasma
reapareceu e exigiu sua corda de volta, ou não poderia seduzir para a morte
outra mulher para tomar o seu lugar, mas o soldado enroscou a corda no braço e
bradou “saia do meu caminho!” o fantasma assumiu um aspecto diabólico e avançou
contra o soldado, que o golpeou, mas feriu o seu próprio nariz, que sangrou.
Como fantasmas não gostam de sangue ele atirou algumas gotas nela, que assustada
se afastou alguns passos e começou a amaldiçoá-lo. Isso prosseguiu por toda a noite.
Quando
o dia raiou, os aldeões foram agradecer ao soldado por ter salvado a garota e
ele lhes contou o que tinha acontecido. Todos puderam ver a marca da corda que
afundara na carne formando um anel vermelho.
O
braço de Ashitaka ostenta a marca da ferida que ele recebeu do javali, ao ser
possuído pelo mal. Psicologicamente, o javali foi tomado pela unilateralidade,
por um único modelo de comportamento, ele só sabia destruir e corromper. A
possessão é um mal terrível, mas Nosso herói não é possuído, ele possui
discernimento e se coloca frontalmente contra a atitude de todos os envolvidos
no conflito, deuses, soldados e as mulheres. Ao invés de ser possuído pelo mal
ele parece ser capaz de, em certa medida, integrá-lo. É interessante perceber
algo na atitude das mulheres da vila de metalúrgicos, representada por sua
líder, pois, me parece, há um certo tipo de Eros feminino inconsciente ali que
se manifesta na consciência como poder. A separação da natureza estabelece um
conflito, sangrento e terrível, o mais aterrador desse conflito é ver mulheres
lutando contra a natureza e seus instintos, ao assumir o comando, elas passam a
agir exatamente como os homens, deixando de lado sua feminilidade. Há aqui uma
mensagem preciosa para o nosso tempo.
Em
certo sentido, Ashitaka pode ser encarado, como um símbolo do espírito, um
símbolo do self, e, como tal, tem o
poder de unir os opostos. Mas nesse ponto, a mensagem do filme é dúbia, os
deuses morrem quase todos, os mortais também sofrem perdas imensas e a floresta
é devastada depois da morte do deus da floresta, e Ashitaka não se une a
princesa mononoke. Por mais que ele possa ser encarado como um símbolo de
união, essa união não ocorre, ele e sua donzela permanecem separados, apesar de
terem tido que agir juntos para salvar a todos. No final, a morte do deus da
floresta iria destruir a todos, sem exceção, sem escolher um lado. Em certo
sentido, os javalis sucumbem a algo similar a uma das tentações de Jesus no
deserto, em Mateus 4: 5-7
Então o diabo o levou à cidade santa, colocou-o na parte mais
alta do templo e lhe disse:
"Se você é o Filho de Deus, jogue-se daqui para baixo. Pois está escrito: ‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, e com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra’".
Jesus lhe respondeu: "Também está escrito: ‘Não ponha à prova o Senhor, o seu Deus’"
Os
javalis não reconheciam no deus doador de vida igualmente o senhor da morte, e
incorriam nesse pecado, de “tentar a deus”. Novamente, há aqui algo de
importância capital para a nossa sociedade, pois muito do que é a
espiritualidade cristã, no que concerne as teorias da prosperidade, parecem se
resumir a esse pecado. Há, igualmente, algo peculiar a sensibilidade japonesa
nesse deus, pois ele reúne em si vida e morte, como Izanami, diferente da
sensibilidade cristã e sua cisão típica representada pela privatio boni.
A
morte de deus e a destruição da natureza caminham de mãos dadas e, no amargo
fim, não importará muito de que lado estamos, a tragédia virá para todos. Por
um breve instante, Ashitaka e a princesa se uniram, e com essa união salvaram
muitas vidas, mas seguiram seus caminhos separados, quando irão novamente se
encontrar? Em qual alma irá acontecer essa esperada união? Muito mais poderia ser
dito, e, por certo, uma análise mais pormenorizada poderia ser feita, porém, em
virtude da exiguidade do tempo, eu termino aqui, salientando que esse esforço
não passa de um esboço.
Caramba, que análise sensacional! Acabei de assistir o filme e já senti que tinha algo de especial logo no começo. Li o texto mas ptecisarei ler novamente pois está muito bem fundamentado gostei bastante. Um detalhe sobre a partida de Ashitaka da vila é que a anciã diz que pelas tradições eles não poderiam se despedir dele, fiquei agora com o simbolismo que isso representaria e já aproveitando o tema, o imperador e seu súdito, um com o desejo pela cabeça do espírito da floresta desejando imortalidade e o outro indo até o limite das consequências para cumprir sua missão, que significados esses personagens representariam no mito, que lições tiraríamos deles? Desde já, parabéns pelo trabalho
ResponderExcluirAcredito que os dois tinham medo da morte e não aceitavam o Deus da Vida e da Morte em sua totalidade. A vida e a morte são dois lados do mesmo ciclo, você não pode ter um sem o outro. O súdito que você menciona é o trickster, que não acho q ele esteja querendo cumprir uma missão mas age por interesse próprio. A imperatriz também é algum arquétipo que não identifiquei totalmente, mas simboliza poder e ambição como forças destrutivas. Eles tem que morrer (e renascer) por causa da sua unilateralidade. Lembrando que tudo pode ser visto como diferentes aspectos de uma única psique.
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