sábado, 11 de fevereiro de 2012

Reflexões...

Creio que é sempre preciso refletir, e talvez a mais urgente de todas as reflexões seja sempre aquela que fazemos sobre nós mesmos. Isso devido ao fato de que somos como prismas com relação ao mundo que nos cerca, sua luz passa por nós e não permanece intacta, mas se quebra e se modifica num espectro mais amplo do que aquele do princípio. Ao refletir sobre o mundo, urge refletirmos sobre nós mesmos, pois toda idéia que surgir dessa reflexão, tem a nós como solo, desse solo brota e esse solo, nossa alma, as sustêm, e eu conheço poucas coisas mais importantes do que idéias, logo, esse olhar reflexivo é fundamental para qualquer um que pretenda ter idéias. Talvez, não para qualquer um que pretenda ter idéias, algumas pessoas fazem questão de ter idéias as mais tolas, ou as mais estranhas, e para se ter esse tipo de idéia o fundamental é justamente a irreflexão. Para aqueles que desejam que suas idéias sejam mais do que opiniões e ilusões quiméricas, todavia, é preciso perguntar por si mesmo. Hoje resolvi dedicar algum tempo do meu dia a fazer isso, pensar sobre mim mesmo.

O que motiva essa modesta reflexão é um hábito que tenho muito arraigado de estar em muitos lugares e em lugar algum ao mesmo tempo. É curioso como muitos encontram definições para si a partir de lugares, reais ou imaginários. Quando estou em São Paulo sou cearense, é uma das primeiras coisas que se diz ao meu respeito, quando estou em meu torrão natal, confesso que a condição de ser cearense não me interessa de maneira particular nem me define, mas esse é um lugar concreto, por mais que, quando esteja fora dele não seja mais do que uma idéia. Muitas vezes os lugares são pessoas, eu sempre sou, em algum momento, o filho de alguém, o irmão de alguém, o amigo de alguém, o namorado de alguém ou colega ou o que seja. Curiosamente, percebo que esse tipo de lugar é caro para muitos, é uma sombra amena e confortável. Na política se é pessoa de confiança do senhor beltrano ou sicrano, e nessa posição se encontra o profundo e inebriante prazer de ser. As pessoas mesmas não são importantes, mas trabalham com algum senhor de grande dignidade e poder, e usam o nome desse dignitário quase como sobrenome, e isso as define. Em algumas situações, o trabalho é esse lugar, costumo dizer que sou professor, mas já se vão alguns meses que não coloco os pés numa sala de aula. É comum ouvir este tipo de apresentação “este é o senhor sicrano, cardiologista”, e nenhuma outra apresentação se faz necessária, estamos diante de um cardiologista, ali está toda a dignidade de uma classe de homens dedicados a salvaguardar a saúde de nossos combalidos corações, que outro tipo de explicação é necessária? Há também a ideologia, ou os movimentos, os “ismos” como Jung gostava de chamá-los, com uma pontinha de ironia. Sou feminista, sou machista, sou do movimento GLBTT (se é que essa ainda é a sigla e não acrescentaram mais alguma letra, creio que logo será o movimento ABC, pra simplificar, pois certamente vai começar no A e terminar no Z), sou do movimento negro, sou sionista, sou anti-semita, comunista, capitalista, burguês. É comum que as pessoas encontrem a si mesmas nesses estranhos espelhos, que refletem tudo menos o indivíduo, que neles se perde. É comum também que sirva para identificar com facilidade o outro “cuidado, fulano é comunista”, ou “aquele sujeito é machista”. Há certamente as igrejas, as mais variadas, não basta ser cristão, é preciso ser um batista da igreja da graça da benção da esquina, ou algo que o valha, sunita, xiita, sefardita, askenazi, e esses lugares dizem muito a muita gente. Quem nunca ouviu o deleite com que algumas pessoas dizem sobre si mesmas “sou da igreja”, ou “sou judeu”, e eu me pergunto, o que ela realmente está dizendo sobre si? Que de fato há uma identidade expressa nessa fala eu não duvido.

O que me leva a refletir é que estou sempre em muitos lugares, conheço e me relaciono com pessoas de todas as idades, dos 18 aos 70. Às vezes estou em meio aos lutadores, outras vezes em meio aqueles que buscam a verdade espiritual, noutras estou no seio dos materialistas e niilistas, em alguns momentos entre os pobres, noutro entre os muito ricos. Encontro alegria ao estar em meio as pessoas da arte, algumas vezes gosto de passear pelas terras dos boêmios, e posso ser encontrado amiúde entre os acadêmicos, alguém poderia até dizer que sou um deles. Mas em todos esses lugares me sinto a vontade, e em todos esses lugares me sinto um estranho. Algumas vezes me pego pensando que sou um intelectual, mas com igual propriedade poderia dizer que sou um artista marcial, ou melhor, um militante político, ou ainda, um homem de fé. Isso me rouba o prazer que percebo nas outras pessoas em ter seus lugares favoritos, é comum até, que quando estou num desses lugares, seja confundido com um nativo, até aceito pelos locais como um de seus pares, mas eu sei, e só eu sei, que sou estrangeiro. Estou sempre de passagem, num momento conversando com deleite intelectual sobre psicanálise, para em seguida estar conversando despreocupadamente sobre desenhos animados. Discutindo os rumos da política, analisando tendências e arquitetando cenários possíveis e planejando táticas, para poucas horas depois estar falando sobre teatro ou música, sempre me movendo. Quando estou onde estou, minha paixão pelo momento confunde, e faz pensar que aquele é o meu lugar, o que me define, mas no momento seguinte a paixão se desloca para outro lugar, e se muda de mala e cuia. E o que me preocupa é não ter ou não querer ter o passaporte de nenhum desses lugares pelos quais me movo. Querer ter sempre a perspectiva de ter muitas perspectivas, de ser sempre mercurial e não estar preso.

Mas há um contentamento secreto em estar preso, a prisão é construída com as barras de ferro da certeza. Não duvide caro leitor que, quando perguntar a alguém “quem é você?” depois da resposta óbvia do nome de batismo, ou apelido, ou ambos, virá algo como “sou do PT”, ou “trabalho em tal lugar”, “estudo naquela...”, “sou namorada do fulano”, a insistência na pergunta, “quem é você?” levará apenas ao mal estar, se levar é claro. É mais provável que se pense simplesmente estar diante de algum parvo “ora bolas? Mas não acabo de responder?” pensará a pessoa que responder com esses lugares a que me referi, “sou um artista”, “sou escritor”, e tantos outros. É comum até que, quando alguém se identifica com um desses lugares, evita os outros ou só os observa de longe, numa postura que muitas vezes me parece bastante sensata, como o catedrático que passa ao largo do grupo de estudantes, com, no máximo, um digno e distante meneio de cabeça. Eu de minha parte, muitas vezes tenho benefícios por estar perpetuamente me movendo, mas como disse antes, é sensato estar num lugar bem definido e evitar os demais. A minha reflexão visa justamente pensar essas minhas andanças simbólicas, e essa falta de lar ou de pertencer a esses lugares. Isso porque, no fundo, vejo com certa clareza que se trata de um jogo de máscaras, e me divirto em colocá-las e tirá-las, e que essas máscaras não podem nos definir, todavia, a ilusão de que elas nos definem é algo que traz alento. O fato mesmo de estar refletindo sobre isso, que normalmente é algo sobre o qual não se reflete, já mostra uma certa impossibilidade de armar um acampamento mais definitivo em algum lugar. Não que eu saiba mais, talvez eu saiba menos, pois não tenho as certezas que a permanência em um desses lugares traz, certezas que trazem muitos tipos de alívio. Para o andarilho, o pó da estrada é a dúvida e a certeza é algo que fica para trás como as placas do caminho.

Mesmo assim, eu também preciso de algum alento e percebo que, se há algum lugar em que me sinto em casa mais do que os outros, e ao qual retorno com certa freqüência, é este: as letras. Entre elas e brincando com elas, ou as organizando para expressar alguma idéia complicada, ou simplesmente pelo prazer de mexer com elas, sinto que poderia um dia ter uma casinha por aqui, cercado de letras. Por enquanto, fica como o lugar que gosto de voltar e me sentar para olhar distraído para o horizonte enquanto bato o pó da estrada da sola dos meus sapatos e penso sobre as minhas peregrinações. Pois eu, de minha parte, não sei a resposta para a pergunta “quem é você?”, ou ao menos, não sei ainda...

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