Estive meditando sobre uma mensagem passada por psicólogos em seus murais no Facebook, que basicamente versa sobre preconceitos filosóficos e pseudocientíficos-racionais, lugares comuns e chavões que estão associados na mentalidade dita “mediana” acerca do psicólogo e de seu ofício, estultices e platitudes do tipo “psicólogos não são telepatas”, ou “psicólogos também sofrem por amor”. Convém salientar que, apesar de estudioso de psicologia, não sou psicólogo, o que não me impede de trazer um ponto de vista psicológico a essa temática – visto ser um estudioso de psicologia e devido ao fato dos psicólogos estarem mais preocupados em repassar essa mensagem (tenho a impressão que isso não vai ajudar a minha popularidade...). Essa empreitada é temerária, visto que é igualmente uma estultice opor ao chavão e ao slogan qualquer tipo de argumento, mesmo que seja pouco mais do que bom senso, e, não estivesse eu sofrendo da mais atroz insônia, nem me atreveria a iniciar tal empreitada inútil, mas... Estou com insônia. Contra o slogan e os desejos quiméricos, a razão só possui força até certo ponto, e claudica dependendo da temperatura dos afetos, quando estes ultrapassam certo ponto crítico a razão perde sua eficácia. Além disso, a disseminação desse tipo de chavão só demonstra que estamos lidando com a psicologia de massa, e Jung afirmou certa vez que cem cabeças brilhantes juntas formam uma só cabeça de bagre. Logo, não é à toa que tais chavões se disseminem com tal rapidez e de maneira acrítica. Não que, in totum, sejam falsos, na realidade são banalidades tão simples que, como disse certa vez Von Franz, até um carneiro poderia tê-las proferido, algo do tipo “psicólogos também são seres humanos”, ora seria de se espantar é se não fossem, isso não passa de uma obviedade e a crítica não visa negar a verdade simplória desses argumentos (a bem pensar, em qualquer profissão, são seres humanos que atuam), mas tentar discernir o que subjaz a elas, esse é o ponto.
Certa feita, Jung afirmou que “O homem reconhece que toda grande verdade é simples. Aquele cujo instinto está atrofiado, imagina, por isso, que ela se encontre em simplificações baratas e trivialidades, ou, por outro lado, em razão de seu desapontamento, incorre no erro oposto de imaginar a verdade como algo infinitamente complicado e obscuro”. Convém indagar a razão de justamente os psicólogos se deixarem enredar por simplificações baratas (não todos, é claro, mas a tal mensagem se dirige a eles e através deles se espalha). Que necessidade há de lembrar que psicólogos são humanos? Ou de que eles não são “psicólogos” em festinhas e batizados? Se pensarmos com Jung, e levarmos em conta sua teoria mais basilar acerca do psiquismo e sua relação paradoxal entre consciente/inconsciente que se dá de maneira compensatória e/ou complementar, convém nos perguntarmos a quem realmente se dirige a mensagem óbvia de que psicólogos são seres humanos.
A essa altura, é importante nos lembrarmos em que tipo de sociedade vivemos, ou seja, que tipo de sociedade gera os psicólogos (uma sociedade apinhada de imposições coletivas, slogans, idéias, filosofias e informações, que possuem uma tendência, ou sempre podem conter o perigo de esmagar o sujeito), vivemos numa sociedade em que nossos grandes símbolos, nossa herança mais preciosa, encontra-se num lamentável estado de esvaziamento, como mera curiosidades históricas, ou abertamente aviltados, quando não, fanaticamente defendidos, e todo fanatismo é compensação de secreta dúvida interior. Esses grandes sistemas simbólicos – nossos mitos e religiões – indicaram para a humanidade o caminho do espírito e de nós mesmos por milênios, mas estamos todos, como gostava de afirmar Campbell, “em queda livre em direção ao futuro”, os grandes mitos perderam a força. O que isso diz respeito aos nossos psicólogos? Você pode estar se perguntando, se é que ainda continua lendo e não simplesmente relegou, aborrecido, esse curto ensaio e voltou a divulgar slogans pela rede mundial de computadores... Pois bem, Jung possuía uma teoria das mais interessantes para explicar o surgimento da psicologia científica no último quartel do século dezenove, esse surgimento estaria intimamente ligado a perda de eficácia, especialmente naquela pretensiosa península do continente asiático chamada Europa, do descrédito coletivo dos dogmas e religiões instituídas, especialmente a Igreja católica, Jung costumava adjetivar de “catástrofe espiritual” o advento do protestantismo, que despedaçou o dogma católico e sua unidade. O ocaso desses grandes e majestosos símbolos coincide com o surgimento da psicologia.
Ora, o psicólogo, e a psicologia assumem assim um papel destacado. Von Franz, com sua grande lucidez, afirmou certa feita que, no fundo, nossa psicologia científica não passa de “mitologemas explicativos” para as realidades inconscientes, e que para nossa era, são adequados devido a nossa mentalidade “científica”. O psicólogo, esse, desculpem-me a obviedade, “ser humano”, torna-se mutatis mutandis, esquálido sucedâneo para o clérigo e o Xamã. Acontece que esse lugar, pode ser facilmente confundido com a idéia arquetípica do salvador, aquele que tem as chaves para as portas do inconsciente. Certa vez, de maneira jocosa Jung proferiu conselho aos analistas “se é que existe um deus, lembre-se sempre, que ele não é você”. O lugar que ocupa o analista o torna presa fácil de inflação psíquica. Há ainda outro fator a ser levado em conta, para ser um analista, é preciso não apenas estudo (não me entendam mal, estudo é essencial e indispensável) é necessário igualmente um larga dose de coragem, compaixão, e, ter passado pelo processo de desenvolvimento da personalidade ele mesmo, ter queimado nas chamas dos afetos e do sofrimento que levam a mudança genuína, pois o analista só leva o paciente até onde ele mesmo foi. E existem casos, infelizmente não são raros, daquilo que Jung chamava de “neurose de identificação com a persona”, ao invés de uma personalidade madura, bem desenvolvida e relativamente estável, há apenas uma máscara, atrás da qual existe apenas sujeitos mesquinhos e pusilânimes, que são apenas “psicólogos”, ou seja, crêem ser portadores da dignidade que na verdade é algo coletivo.
O sol já raiou e estou aqui ainda acordado pensando sobre essa mensagem de facebook, bem mais curta, concisa e fácil do que esse modesto ensaio, que apesar de modesto, dificilmente terá o mesmo efeito que teve a tal mensagem, nem espero que tenha, do contrário terei fracassado em meu intento. Finalizo com a passagem que me animou a escrever, de M. L. Von Franz, e que, creio eu, os psicólogos deveriam ter em mente: “Quase sempre encontramos nas pessoas de hoje uma coleção de preconceitos filosóficos e pseudocientíficos-racionais oriundos do século XIX que, na verdade, já foram desacreditados pelos principais cientistas da nossa época. Elas assimilaram essas idéias na época do colégio e lendo relatos jornalísticos baratos: os sonhos não têm significado, ou são expressões do desejo sexual ; não existem fantasmas; já se ouviu falar no inconsciente, mas não é realmente verdadeiro; não existe nenhum efeito sem causa racional e palpável; basta que a pessoa seja razoável e tudo ficará bem; se a sociedade fosse concertada , tudo seria corrigido etc. Depois dessa variedade de preconceitos, o pior e o mais difuso é o pensamento estatístico aberto ou implícito: “O que eu faço não faz a menor diferença; sou apenas um grão de areia entre milhões de pessoas; minha existência é um acidente insignificante”. Essa estrutura mental é um veneno direto e mortal para a alma.
Se, os psicólogos sofrem tanto as imposições coletivas a ponto de se esquecerem dos fatos citados por Von Franz, e de não possuírem a força interior para resistirem subjetivamente a esse tipo de imposição, fortaleza essa que só vem do contato com o numinoso e do elemento religioso da alma, sem o qual realmente sucumbimos a massa ao sermos dominados pelos afetos, todos os que sofrem e precisam de psicólogos estão com sérios problemas...
http://www.rubedo.psc.br/Artlivro/profvoca.htm
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