[essa é apenas a primeira sessão de um escrito bem mais longo, aproveitem]
O
intuito desse escrito é ajudar a compreender de que maneira se articula o
pensamento de Jung e por quais parâmetros podemos entender a maneira como
elaborou sua Psicologia. Utilizo o termo “pensamento” justamente por seu
caráter genérico e pouco específico, e para evitar o uso da palavra “teoria”,
que, como veremos, é inadequada para descrever a Psicologia de Jung. Existem
muitos preconceitos e incompreensões que cercam a sua obra, algumas dessas
mistificações se devem a qualidade e ao caráter de seus leitores, e quanto a
isso nada, ou muito pouco pode ser feito. Por outro lado, há de fato uma imensa
dificuldade em adentrar ao pensamento de Jung, e, não raro, numa primeira
visada temos impressões equivocadas, especialmente porque, assim como os
americanos, Jung esperava a inteligência de seus leitores.
Jung
conta uma historieta interessante. Quando estava nos Estados Unidos ao passar
por uma linha férrea notou que, diferente da Europa, não havia uma cerca
impedindo que as pessoas arriscassem a vida passando por cima dos trilhos,
havia apenas uma placa de advertência. Diante desse fato da cultura material,
dessa comparação tão peculiar, ele deduziu que os europeus pressupõem a
burrice, pois é preciso impedir pessoas idiotas de morrerem por serem incautas,
apressadas ou intrépidas usando uma cerca. Já os americanos, supõe que basta um
aviso, pois você é inteligente o bastante para não assumir um risco
desnecessário. Americanos pressupõem a inteligência e os europeus a burrice.
Talvez haja uma outra conclusão acerca do fato observado por Jung, os
americanos não dão a mínima para os idiotas, enquanto os europeus se importam o
bastante para que seus idiotas sejam mantidos vivos, apesar de si mesmos. Se me
permitem ampliar ainda mais a alegoria, não pretendo fazer aqui uma placa de
advertência, mas uma cerca conceitual,
então, eu lhe peço desculpas estimado leitor, mas, diferente do que usualmente
faço, vou supor que os leitores de Jung são, em média, idiotas.
Essa
não é uma opinião apenas minha, um outro autor, de quem particularmente não
gosto, James Hillman, compartilha da mesmíssima opinião, diz ele que:
“Junguianos são em sua maioria gente de segunda linha com mente de terceira
categoria”. Se você, estimado leitor, não está descrito nessa frase, certamente
sabe do que eu e Hillman estamos falando.
Se
você ainda está lendo, significa que talvez seja alguém que só precise de uma
placa, e não de uma cerca, esse escrito, porém também vai lhe ser útil. O
universo Junguiano é tão apinhado de falsidades, desonestidade, e crasso
desconhecimento de Jung e seu pensamento, que pessoas inteligentes se afastam
assustadas ou francamente horrorizadas. Eu mesmo devo ter permanecido, porque
inicialmente não tive o menor interesse em conversar com “junguianos” ou me
inteirar de que existia uma comunidade ao redor da obra de Jung. Durante os
primeiros dez anos de leitura da obra, ela me absorveu completamente devido ao
imenso desafio intelectual, espiritual e moral que representa. Só depois eu
descobri que essa comunidade era na verdade um circo...
O
trabalho a que me proponho aqui, possui um certo viés epistemológico, mas não
se trata de uma obra de epistemologia, especialmente por se dirigir a uma
finalidade prática. Jung propôs um método psicoterapêutico, e os estudiosos do
seu pensamento, podem acabar se tornando psicoterapeutas. A psicoterapia é uma
prática dificílima, extremamente arriscada e perigosa. Jung criou o mais
abrangente e profundo método de psicoterapia, algo de uma imensa utilidade
prática, capaz de ajudar muitas pessoas, desde que se compreenda seu pensamento
e saiba atuar de acordo com seu método. Como o fito desse escrito é ajudar
justamente as pessoas que se aventuram nessa senda, ele não se caracteriza como
um escrito de epistemologia propriamente dito.
Como
pretendo construir essa “cerca” conceitual? Esclarecendo algumas categorias que
ou estão presentes na obra de Jung, ou que a descrevem e circunscrevem. Eu
acredito que se você, estimado leitor, as compreender, poderá honestamente
retornar aos textos de Jung evitando ser atropelado pelo trem do misticismo, o
vagão do pensamento teosófico, a locomotiva da interpretação anacrônica de
Jung, o vagão do sincretismo com a psicanálise, ou os vagões do psicologismo,
da pseudo-metafísica e do racionalismo aplicado.
Quais
são essas categorias? A dialética,
Jung nomeadamente chama seu método clínico de “método dialético”, compreender do que se trata e de como Jung se
utiliza em termos práticos é fundamental para evitar ser atropelado pelo
psicologismo e pela mistura espúria com a psicanálise ou qualquer outra teoria
da moda. A segunda categoria é o nominalismo,
Jung afirmou diversas vezes que nunca fez uma teoria, mas sim um “nominalismo culto”, compreender isso
evita ser atropelado por uma interpretação racionalista da obra de Jung. O pragmatismo e o empirismo, bem como a noção
de ciência de Jung compõem outra parte dessa cerca juntamente com o funcionalismo/estruturalismo e, por
fim, as duas últimas partes têm a ver com Kant: o seu agnosticismo e Dualismo.
Como um adendo importante, também me deterei naquilo que considero ser a ética
proposta por Jung, e esse viés perpassará toda a discussão desse escrito.
Jung
denomina o seu método clínico de método
dialético, no entanto ele não possui uma definição regional de dialética,
ou em outras palavras, ele não redefine o sentido de dialética em seu sistema
de pensamento. Muito pelo contrário, ao falar em dialética ele usa definições
simples e diretas. Em seu livro A Prática
da Psicoterapia, Jung afirma que a psicoterapia deixa de ser vista como um
método simples e mesmo evidente, e pouco a pouco passa a ser vista como um
procedimento dialético, que ele define simplesmente como uma discussão entre
duas pessoas, para em seguida dar duas definições igualmente concisas.
Tratava-se originalmente da arte de conversação entre os antigos filósofos, mas
que logo adquire o significado de “método para produzir novas sínteses”.
Mais
adiante, no mesmo livro, ele torna essa definição tanto mais complexa, quanto a
regionaliza um pouco, ou seja, ele faz um uso do termo dialética que é um pouco
mais específico ao seu sistema de pensamento. Ao especificar a sua contribuição
no desenvolvimento da moderna psicoterapia, que surge com Freud, recebe uma
contribuição de Adler e, por fim, Jung aparece subsumindo os dois como casos
particulares de sua psicologia mais geral e acrescenta algo que seus dois
antecessores não foram capazes ou não se interessaram em integrar em seus
métodos clínicos. Nesse sentido, trata-se da capacidade de desenvolvimento
individual do paciente, ou seja, do processo de individuação.
O
método dialético é justamente o indicado para lidar com esse aspecto
individual, pois a individualidade é única, imprevisível e não interpretável.
Ao lidar com esse imponderável, o médico deve renunciar a todos os seus
pressupostos e técnicas e limitar-se a um método puramente dialético, ou dito
em outras palavras, evitar todos os métodos. Jung doravante efetua uma correção
em sua afirmação anterior, de que o método dialético seria o mais recente fruto
da evolução dos métodos psicoterapêuticos, porém não se trata de uma evolução
dos métodos, mas de uma completa renúncia a eles. Nesse sentido a dialética se
converte numa atitude, com as características de ser “a menos preconcebida
possível”. Na atitude dialética, o médico abandona sua posição ativa e
simplesmente vivencia junto um processo evolutivo individual. Fundamentalmente,
no método dialético ou atitude dialética, ou processo dialético, o psicoterapeuta
está em pé de igualdade com aquele que ainda é considerado paciente.
Antes
de avançarmos, convém recordar que a problemática que força o médico a adotar a
dialética como procedimento é a da individualidade, ou seja, o fenômeno da
individualidade do paciente: a sua separação da primitiva participação mística
seja com as imagos parentais ou com a sociedade; é o que obriga ao abandono de
todos os métodos e ter como única ferramenta a própria personalidade. Aqui se
revela uma característica empírica de Jung, ele não força o objeto (nesse caso
a individualidade) a se conformar a conceitos ou categorias pré-concebidas,
puramente racionais. Dito de outra maneira, somente a individualidade do médico
pode lidar com a individualidade do paciente em um diálogo livre de
preconceitos teóricos ou filosóficos. O que nos remete a antinomia entre
conhecimento e compreensão, que eu formulo, a partir de Jung como “o conhecimento não importa perante a
compreensão e a compreensão não importa perante o conhecimento”. Jung
afirma, em Presente e Futuro, que não
pode haver autoconhecimento a partir de uma teoria, pois quanto mais uma teoria
pretende validade universal menor sua possibilidade de aplicação a uma
conjuntura de fatos individuais. Como as teorias se baseiam na experiência elas
são estatísticas, estipulam uma média ideal que elimina todas as exceções e
esse valor médio ideal figura na teoria como um fato fundamental, com isso as
exceções se anulam reciprocamente.
O
método estatístico nos dá um termo médio ideal de uma conjuntura de fatos e não
a sua realidade empírica, esta por sua vez se caracteriza justamente pela
irregularidade. A conclusão é que não pode haver autoconhecimento por meio de
pressupostos teóricos, já que o objetivo do autoconhecimento é um individuo, ou
seja, uma exceção e uma irregularidade relativas. O indivíduo não é
caracterizado pelo regular (médio) e o universal, mas pelo único. Ele não é uma
unidade recorrente, mas algo único que não pode ser comparada e nem mesmo
conhecida de antemão. Em nosso, caso, o do método
dialético, ou seja, a compreensão de um outro indivíduo no processo
analítico, é preciso abandonar os pressupostos teóricos pelo fato da
individualidade não ser um valor ideal, ou uma regularidade, tampouco unidade
recorrente, mas uma exceção e irregularidade não passível de comparação com
dados preexistentes da realidade ou teóricos. Assim o conhecimento se dirige ao
regular e universal, enquanto a compreensão se dirige ao individual. O que é
vantagem para o conhecimento redunda em desvantagem para a compreensão, no caso
do terapeuta ele deve sustentar os opostos sem contradição e atentar tanto para
o conhecimento quanto a compreensão, visto a compreensão ser indispensável ao
tratamento psíquico que tenha como horizonte a individuação, em outras
palavras, que seja pautado pela ética da
individuação.
Jung
não propõe o abandono da ciência ou do método estatístico, apenas aponta sua
patente limitação quando se trata de uma psicoterapia que tem diante si não um
termo médio ideal, mas um ser humano de carne, osso com uma existência
individual, e que possui em si o germe, a potencialidade da individualidade
psíquica. Ele gostava de um velho ditado suíço, o de que não se deve jogar fora
o bebê junto da água suja do banho, ao criticar o método estatístico ele o faz
não simplesmente para abandoná-lo, mas para constituir uma perspectiva que
possa levar em conta a individualidade, sem abrir mão de constituir uma
Psicologia geral de cunho científico, como veremos adiante.
Como
podemos compreender isso a luz da dialética? Entender a ligação dessa
sofisticada discussão metodológica e epistemológica de Jung que redunda na
sugestão de uma ética analítica, com a arte de conversação entre os antigos
filósofos? Eu usarei o conhecimento histórico e filosófico como uma maneira de
ajudar você, estimado leitor, a melhor compreender Jung. Tudo o que eu
apresentar doravante, são ferramentas heurísticas, isto é, explicativas. Jung
supõe uma vasta erudição em seus leitores, nenhum leitor culto médio possui o
grau de erudição requerido para se compreender sua vasta obra, não se culpe por
isso. Desde cedo eu segui o conselho de Joseph Campbell de procurar os autores
que eram referência para os grandes autores que eu estava lendo, como Jung, e
seguir seus rastros intelectuais para melhor compreendê-lo.
Uma
coisa importante é marcar a diferença entre Jung e os “antigos filósofos”, a primeira
e mais fundamental é a de que Jung jamais foi filósofo. Se pensarmos em Platão
em especial, muitos acusam Jung de praticar uma espécie de neo-platonismo ao
falar em arquétipos (visto esse ser um termo platônico, uma perífrase
explicativa para a ideia, o eidos, platônico), todavia a noção de arquétipo de
Jung pouco ou nada tem a ver com a noção platônica. É preciso que fique claro
que Jung negava a metafísica, não era filósofo e era um cientista, como veremos
ao falar em seu agnosticismo e nominalismo culto, e principalmente,
não era um racionalista, mas um empirista
e pragmático. O problema é que no
meio do “circo”, ou seja, da comunidade junguiana, algumas pessoas fazem um uso
dos arquétipos como se eles fossem de fato um platonismo psicológico, e incorrem
num horrendo psicologismo.
Jung
não parte em sua análise dos fatos psicológicos de princípios prontos, que regeriam
a articulação entre os fatos psicológicos. Ele faz justamente o oposto, procura
compreender a maneira como os fatos psicológicos se articulam sem recorrer a
qualquer princípio que os regule de maneira universal e apriorística,
procurando no interior dos próprios fatos psicológicos a sua forma de
estruturação. Jung também não simplesmente generaliza os fenômenos empíricos e
a partir dessas generalizações cria conceitos que existem apenas na sua cabeça,
é por isso que ele se apressava em dizer que não criou uma teoria, pois seus
conceitos não são essas generalizações que se afastam dos fatos empíricos. Ele
até mesmo nomeia seus conceitos de “conceitos empíricos” ou “conceitos
experimentais”. Seus conceitos descrevem os fenômenos, mas não os explicam. Não
é a toa que ele compara os arquétipos a classificação botânica, pois a classificação
botânica não é um fato empírico, mas descreve e classifica o fato empírico da
similaridade entre as famílias das plantas. Assim como a classificação
botânica, os arquétipos não regem a articulação dos fatos empíricos, mas são nomes que descrevem fenômenos
análogos. Os conceitos de Jung foram criados com o intuito de traduzir
objetivamente a realidade dos fenômenos psíquicos obervados.
Nesse
sentido, quando eu vou encarar um fenômeno individual, que não pode ser
comparado, mas que é uma irregularidade relativa, se antes eu já não dispunha
de princípios prontos que regeriam a articulação dos fenômenos, à moda
racionalista, aqui eu perco até mesmo a possibilidade de usar generalizações
teóricas, ou o método estatístico de propor uma média ideal, pois a individualidade
não é uma média, mas uma exceção à média. Nesse caso, o método clínico é um procedimento dialético, pois a
dialética é uma forma de compreender as coisas em si e por si mesmas, assim, ao
invés de saber de antemão, aprioristicamente os princípios universais que regem
a articulação dos fenômenos psicológicos, Jung descobre dialeticamente a lógica
de articulação desses fenômenos neles mesmos.
Curiosamente,
isso resolve o problema do abandono de todos os métodos, pois a dialética não é
um método que já vem pronto de antemão e pode ser simplesmente aplicado de
maneira mecânica a realidade dos fatos psicológicos e que me permite chegar a
um certo resultado. Paradoxalmente, o método depende dos objetos em questão, do
percurso percorrido no trato com esses. A dialética não aponta um caminho de
antemão, pois é a lógica interna desses objetos investigados que vai indicar e
constituir o caminho, ou seja, o método. Isso já era assim em Platão e
Heráclito, por mais que o filósofo de Éfeso seja apontado como o pai da
dialética, é em Platão que o termo é incorporado ao léxico filosófico pela
primeira vez, e aí inicia uma longa carreira, que passa por nomes como
Aristóteles, Hegel e Marx.
Acerca
de Platão, lemos em Filosofia e Método,
do padre Henrique de Lima Vazes, que o caminho dialético não obedece a um
caminho de regras fixadas de antemão, mas segue as peculiaridades próprias do
conteúdo investigado, a partir de uma pergunta ou dificuldade inicial.
Nos
diálogos socráticos de Platão, vemos alguns aspectos da dialética que podem nos
ajudar a compreender melhor o que Jung se propõe a fazer. Sócrates não se
coloca como um grande conhecedor de nenhum tema específico, ao contrário, como
atesta a sua famosa afirmação “tudo o que sei é que nada sei”, ele assumia uma
postura de ignorância, ou seja, de ausência de pressupostos. Assim, ele partia
de uma pergunta ou problema inicial para averiguar o conhecimento de alguém que
alegava ter um saber sobre determinado assunto por meio de uma conversa que
consistia em perguntas que não estavam prontas de antemão, mas que dependiam
das respostas dadas ao problema inicial. Esse problema era, em geral,
aparentemente simples.
Sócrates
fazia perguntas para testar o conhecimento alegado pelo seu interlocutor, mesmo
não tendo ele mesmo esse conhecimento, pois pressupunha que não se podia ter o
conhecimento de um fato isolado, mas que esses fatos estavam em interação. As
perguntas eram então dirigidas à pessoa que julgava saber o que era o amor, ou
a verdade etc., e estavam sutilmente conectadas ao problema original da
conversa, caso uma contradição emergisse isso era o indicativo de que o
interlocutor não possuía o saber que alegara de início. A verdade, seja ela
qual for, não é imediatamente revelada por esse tipo de diálogo, mas se
estabelece a existência de contradições o que invalidam a alegação inicial de
conhecimento sobre algo.
Resumidamente,
temos duas pessoas uma que vai propor uma pergunta e a outra que vai responder
essa pergunta, em seguida, o interlocutor que fez a pergunta vai testar a
resposta dada por meio de uma série de perguntas sutilmente ligadas ao problema
inicial proposto, com o intuito de averiguar a existência de contradições o que
tornaria a resposta inicial falsa.
Obviamente
esse é um resumo da generalização mais ampla possível do método dialético em
Platão, pois a maneira como ele o apresenta varia de acordo com a obra que
estivermos observando. Em termos muito gerais, ao se observar diversos momentos
da dialética platônica em suas obras, percebe-se que o primeiro objetivo de
Sócrates era negativo, ou seja, demonstrar o erro de seus interlocutores, mas
já em Sócrates existe um segundo movimento de considerar as similaridades entre
as proposições particulares que pudessem indicar a existência de um universal
capaz de subsumir as proposições particulares. Tanto em Sócrates quanto em
Platão, por influência de Parmenides temos um direcionamento do método
dialético para as formas eternas, aos universais em sentido realista e não
nominalista.
Platão,
em seus diálogos posteriores a fase socrática, não abandona o método dialético
como proposto por seu mentor, mas o torna algo mais complexo, basicamente um
método de análises seguida de sínteses. Platão faz uma negação do mundo
sensível como algo enganador, e o seu método dialético tem o objetivo de virar
as costas ao conhecimento sensível do mundo e dirigir o olhar para as formas
eternas, puramente racionais, o que pode ser entendido como a orientação
original da alma humana, que anseia secretamente por essa verdade já
vislumbrada, vagamente pressentida, porém esquecida, coberta por um véu de
ignorância. Um aspecto crucial do método dialético como compreendido por
Platão/Sócrates é que ele não é um procedimento solitário, no caso filosófico,
o professor e o aluno são partes integrantes e indispensáveis do método, o
professor convida o aluno a formular suas crenças na forma de hipóteses e em
seguida ou o questiona e desafia a negar ou afirmar certas proposições
sutilmente ligadas à pergunta original e/ou extrai as consequências das
hipóteses levantadas pelo aluno.
Uma
coisa muito curiosa, é que lendo Platão para tentar compreender melhor o que
Jung chama de dialética, certos aspectos que passariam despercebidos numa
leitura de interesse puramente filosófico saltam aos olhos. Por exemplo, por
mais que o método dialético tenha a ver com o logos, ou seja, a palavra, o
discurso, a mente, a racionalidade, existe uma ligação entre os dois professor e
aluno que se dá não pela via do logos, mas sim do Eros, e que permite que o
diálogo não descambe simplesmente em uma polêmica ou agressividade. Mesmo
correndo o risco de ser anacrônico, soa muito como a noção de transferência
formulada por Freud e posteriormente modificada por Jung em virtude de sua
noção diferente de um inconsciente psíquico.
Por
mais que eu adorasse me alongar ainda mais nessa remissão a Platão, o melhor é
retornar a Jung, ou meu excesso de zelo erudito pode transformar meu esforço
numa mera placa. O principal é entender que o caminho dialético não obedece a
um caminho de regras fixadas de antemão, mas segue as peculiaridades próprias
do conteúdo investigado, a partir de uma pergunta ou dificuldade inicial.
Muitas pessoas me perguntam se há uma contradição quando Jung propõe que se
abandonem todos os métodos e técnicas, mas indica o uso de um método para isso,
bom, creio que isso responde a essa dúvida tão frequente. Além disso, é preciso
que fique claro que o método dialético depende dos objetos em questão do
percurso percorrido no trato com eles.
Retornando
a Jung, é importante notar que um de seus conceitos mais importantes, símbolo, é
um resultado direto da dialética e está intimamente ligado a ela. Por meio da
compreensão de símbolo podemos adentrar na dialética de Jung no terreno da
psicologia e de seu nominalismo culto.
O símbolo, em resumo é uma síntese dialética. Uma neurose é uma desunião
consigo mesmo, de uma maneira elegante, Jung a define como a existência de duas
tendências opostas na consciência, sendo que uma delas é inconsciente. Eu vou
esboçar aqui de maneira esquemática como se pode entender dialeticamente o símbolo unificador em Jung (vereinigende Symbol).
Antes
de começar, deixe-me fazer um parênteses erudito, nas obras completas, no Tipos, o termo que aparece em português
é símbolo de união, porém o termo vereinigende
no original em alemão pode ser o particípio presente do verbo vereinigen (unir), assim como o adjetivo
unificador. O substantivo união em alemão é Union
ou menos frequentemente Vereinigung.
Quando eu digo em português símbolo de união, corro o risco entender símbolo em
sentido corriqueiro do nosso idioma e achar que ele não participa dinamicamente
do processo, mas que apenas o representa. Porém, o símbolo unifica nele os
opostos de maneira dinâmica, por isso vou usar a minha tradução símbolo
unificador. Malgrado essa crítica pontual, a tradução das obras completas de
Jung é muito boa no geral.
Voltando
a vaca fria. Há uma tendência consciente que é a tese, essa tese é a atitude
consciente que tem uma tendência natural à unilateralidade, pois toda atitude
para ser adaptativa precisa de uma direção. A atitude atua direcionando,
selecionando e excluindo, com isso, ao ser tornar mais adaptada (a consciência
é um mecanismo momentâneo de adaptação) ela vai deixando de lado cada vez mais
possibilidades vitais que são excluídas e formam um “contrapeso” no
inconsciente, até que essa especialização não se conforma mais aos fatos
objetivos, parando a progressão da libido. Essa libido agora desaparece da
consciência e reativa regressivamente os conteúdos inconscientes (princípio
energético da equivalência), agora com essa quantidade extra de energia, se
instalam na consciência e a dividem. Como num cabo de guerra em que os dois
contendores possuem exatamente a mesma força e nenhum dos dois lados consegue
derrotar o outro. Por isso a consciência perde a sua função adaptativa e
sobrevém a estagnação característica da neurose. A unilateralidade é
indispensável à adaptação, o que se perde na neurose é justamente essa direção
da consciência, seu ponto focal.
Assim
a consciência passa a ser assombrada por sintomas (a antítese oprimida), e, ao
mesmo tempo, a tese consciente é mantida teimosamente por uma infinidade de
razões que tem enorme importância prática, mas que não cabem nesse esquema.
Paradoxalmente, a neurose traz a sua própria terapêutica, pois é justamente
naquilo que foi negado pela atitude consciente que está à saída para o dilema
neurótico. Porém não adianta simplesmente se entregar ao sintoma, como os dois
têm igual força nada acontece verdadeiramente. É por isso que Jung denomina o
papel do analista de espelho dialético,
assim como no método socrático ele vai questionar o paciente de maneira crítica
acerca de suas posições conscientes, numa espécie de dialética negativa (como
exposto anteriormente), diferente de Sócrates, não temos o bom e o belo eternos
para nos guiarmos e sequer sabemos se eles existem ou não (devido à posição de agnosticismo), o que temos como guia é
a manifestação sintomática do inconsciente que podemos simultaneamente criticar
e ao mesmo tempo espelhar dialeticamente e apresentá-la como antítese da
posição consciente, tendo em mente a hipótese basilar de que a relação entre
consciência e inconsciente é compensadora.
O
símbolo para Jung é um fenômeno natural e espontâneo, que unifica as duas
posições que dividem a consciência em uma terceira via onde as duas, tese
(atitude consciente) e antítese (sintoma inconsciente) continuam tendo igual
valor, porém podem ser unificadas e com isso a energia que escoou para o
inconsciente pode retornar a consciência e esse processo dinâmico de unificação
dialética leva a uma nova adaptação, ou seja, a uma nova atitude e a uma nova progressão
da libido. Infelizmente a função transcendente, ou dito de outra maneira, o
símbolo, não é simplesmente um produto da técnica, por mais que ele seja essa
nova síntese que surge da análise das duas posições em conflito, mediadas pelo
Eros que une os dois: médico e paciente, ele permanece sendo um produto
autônomo da psique inconsciente, mas que só pode surgir com a colaboração da
consciência.
Não
é ocioso resaltar, que o esquema que esbocei aqui da dialética proposta por
Jung, do papel de espelho dialético,
bem como da função dinâmica do símbolo e o seu papel na dialética é esquemático
e obviamente incompleto. A vida e a dinâmica desse processo possuem detalhes
que são de suma importância, devil is in
detail! Podemos perceber que há uma enorme sutileza na dialética
psicológica de Jung, pois no fundo se trata num nível mais superficial de um
diálogo entre o médico e o paciente, num nível um pouco mais profundo entre o
médico e o inconsciente do paciente em que o paciente dialoga com o seu
inconsciente por intermédio da figura do médico (espelho dialético) e, num nível mais profundo, um diálogo entre a
consciência e o inconsciente do paciente. Obviamente esse esquema poderia se
complicado ainda mais com a adição de outros elementos, mas se eu assim o fizesse,
ele perderia o valor de ser simples.
Quando
os sintomas estão superados, e podem ser superados por uma análise redutiva dos
mesmos, surge à possibilidade do desenvolvimento da personalidade, pois a
clínica psicológica não é o lugar apenas de quem está doente, mas igualmente da
pessoa sã, mas que sente a premência de se desenvolver, não no sentido inicial
de se transformar, mas no de tronar-se quem se é, ou dito de outra forma, surge
toda a problemática que tocamos inicialmente, a individualidade, e que demanda
uma postura dialética. Novamente sublinho, Jung não era nem filósofo, nem
platônico, metafísico, tampouco gnóstico, tudo do que estou falando aqui está
no campo psicológico. É preciso ressaltar que ao se utilizar um procedimento
dialético, você descobre dialeticamente a lógica de articulação desses
fenômenos neles mesmos, sem que seja imposto nada de fora. Creio que isso
ficará ainda mais claro quando passarmos adiante. Passemos ao nominalismo culto de Jung.