Desde os seis anos de idade pratico artes marciais, e desde a minha adolescência estudo ou pratico budismo, taoísmo e confucionismo. Esse fato me colocou sempre em um conflito que acredito muitas pessoas também enfrentam, consciente ou inconscientemente, pois ao lidar com os frutos da cultura oriental, nos colocamos em uma senda um tanto quanto complicada, pois nossa cultura ocidental (por mais que esses termos de cunho mais coletivo sejam hoje alvo de críticas) se funda em bases muito diversas, em premissas quase opostas, e não podemos simplesmente, mesmo que se queira, nos desenraizarmos e abandonar os símbolos e metáforas em que fomos educados e os princípios mais gerais de nossa educação e cultura. Por isso, acaba-se por tomar uma de duas sendas terrivelmente equivocadas: ou se pratica uma arte marcial sem se importar com seu aspecto espiritual e filosófico, tornando-a uma disciplina meramente física, desprezando um tesouro de sabedoria que a torna algo mais do que um instrumento de violência, ou, por outro lado, acaba-se por se encantar com os símbolos e metáforas de alguma cultura oriental, que parecem mais vivos, novos e interessantes que aqueles em que crescemos e fomos educados desde a infância e ocorre um processo estranho e voluntário de aculturação onde, de maneira danosa a alma, se despreza nossas imagens ancestrais e crenças.
Essas duas sendas, mais comuns, são caminhos que podem com grande facilidade levar ao abismo. Sem seu aspecto filosófico, e a compreensão do contexto cultural específico de uma arte marcial, que envolve uma gama variada de aspectos simbólicos, míticos, alguns que tocam o humano geral e outros particulares de um determinado povo e um determinado tempo, a arte marcial é reduzida a um arremedo patético do que realmente é, e pode ser utilizada apenas como arma. Os rituais e símbolos míticos que regulam e dão um sentido vivo as passagens e transformações de nossa vida, e que nos ajudam a nos ajustar a uma sociedade em particular e ao mistério da vida, não existem à toa. Não é preciso um grande esforço de imaginação para compreender o sentido de “terra devastada” freqüentemente utilizado por Campbell para se referir ao sentimento de se viver numa sociedade “desmitologizada”, onde os grandes rituais foram abandonados e os símbolos ancestrais que alimentavam de vida nossa psique perderam a sua força. Basta ler os jornais ou assistir aos programas de TV dedicados exclusivamente as notícias policiais.
No Shaolin do Norte, estilo que pratico há uns 14 anos e onde me formei professor, no salão de treino há uma placa vermelha colocada próximo aos quadros da linhagem dos mestres já falecidos, uma das coisas escritas lá é que ao aluno “se ensina primeiro literatura e civilidade”, só depois arte marcial. É preciso que todos os jovens nasçam duas vezes, no sentido de serem introduzidos na cultura de uma maneira adequada, possam realmente se tornar membros da tribo, ou de uma civilização específica, com seu ethos próprio, esse é o sentido dos rituais de iniciação das tribos primitivas, onde ocorre toda a sorte de coisas assustadoras e dolorosas e muitas escarificações e marcas permanentes no corpo do jovem iniciado, e onde lhe são transmitidos de maneira dramática os símbolos que irão lhe orientar a assumir seu papel naquela sociedade. Sem isso, somos forçados a fazer essa passagem, cruzar esse importante limiar sozinhos. Na arte marcial não é diferente, os símbolos estão todos lá, com essas mesmas funções. Eu nem consigo contar de quantas maneiras diferentes eu sei quebrar ossos ou aplicar golpes que podem ser fatais, além de um monte de armas que sei usar (minha predileção é pela espada reta), todas essas armas se usadas da maneira correta contra alguém têm um resultado devastador. Uma das primeiras funções da metáfora dos mitos é justamente preparar o indivíduo para o horror da vida, que se alimenta incessantemente de vida. Os povos caçadores, que subsistiam da matança, sempre com as mãos sujas de sangue, tinham que lidar com os efeitos psicológicos desses atos: a culpa e o medo de vingança por parte dos espíritos dos animais. Por isso, nos mitos dos caçadores de búfalos das grandes planícies da América do Norte, os búfalos apareciam como vítimas voluntárias, pois os rituais e danças executados pelas tribos os trariam de volta a vida – assim como novas manadas reapareciam ano a ano – em algumas tribos da áfrica, um guerreiro após matar alguém numa guerra, era trancafiado numa tenda por algum tempo com uma dieta estritamente vegetariana.
Semana passada, assisti a uma palestra interessante de um mestre de Wing Chun chamado Benny Meng, e uma parte da fala dele me chamou muita atenção. Ele disse que havia quatro razões ou formas de se praticar uma arte marcial. A primeira era com o objetivo de “Fitness”, fazer uma atividade física, bastante lúdica e que não é repetitiva com o intuito de ter um corpo mais saudável. A segunda para praticar um esporte de combate, lutando com outras pessoas num ambiente controlado e com regras para restringir golpes que causem lesões sérias ou morte. A terceira como defesa pessoal, para lidar com as vicissitudes de um combate real, onde alguém está tentando lhe matar ou machucar de verdade, sem regras ou proteções. A última, como forma, ou caminho de aperfeiçoamento pessoal. As quatro são muito diferentes entre si, mas apenas a segunda exclui as demais, as outras três se completam. E na minha opinião, não se pode ensinar alguém a lutar “sem antes ensinar literatura e civilidade”. Do contrário, passa-se a ter um falso sentimento de poder, que pode ser muito perigoso. Sempre digo aos meus alunos, com o tempo, passa-se a perceber que com a técnica correta é muito fácil se quebrar um braço ou um pescoço, e se percebe como o corpo pode ser frágil e impermanente, mas o passo seguinte é perceber que não apenas o corpo de um possível oponente é frágil e impermanente, nosso próprio corpo também o é! Não à toa no bushido japonês se diz que “o caminho do samurai é encontrado na morte” e o símbolo do samurai a flor de cerejera. Uma flor extremamente efêmera, como na realidade são todos os fenômenos. O caminho da arte marcial nos coloca em contato com a verdade da vacuidade com relação a nós mesmos, e pode nos ajudar a superar a ilusão do eu. Isso se se tem em mente as majestosas metáforas do budismo de que as artes marciais orientais estão imbuídas. Mas eis que aí surge o problema ao nos depararmos com esse aspecto da arte marcial.
É importante que tenhamos em mente essas majestosas metáforas, esses símbolos e ethos particulares do caminho do guerreiro, mas nesse ponto surge a armadilha. Podemos seguir esse caminho como meros papagaios, sem jamais compreendê-lo, apenas como uma mascarada, e a alma não suporta a contrafação. Vou começar com um exemplo simples para depois explicar as causas desse fato. A polidez e a hierarquia que existe num recinto de treino de artes marciais. Normalmente, existem vários termos – normalmente em chinês e japonês – para se referir as pessoas de maneira polida numa escola de artes marciais: sempai, sirin, sensei, sifu, etc, além de uma série de regras a serem seguidas, sendo essas regras mais ou menos enfatizadas dependendo de uma série de fatores. Normalmente, entre os praticantes ocidentais a ênfase recai sobre a regra, e seu cumprimento escrupuloso mesmo que não se entenda bem o porquê. Ou, ainda pior, com a compreensão que a existência de uma hierarquia é o sentido das regras, algumas das quais parecem absurdas. Na realidade isso é uma abominação, uma deformação grosseira e um macaqueamento que se reveste de pompa, mas que é vergonhoso.
Passei a compreender melhor o sentido vivo desse tipo de coisa ao treinar com chineses, eles na verdade não têm regras, mas sim um ethos, um costume. As pessoas sabem como se portar sem necessariamente apelar para regras, ou coisa do tipo. Na escola da qual tenho a alegria de fazer parte, a Academia Sino-Brasileira de Kung Fu, existem poucas “regras” claras, como cumprimentar os quadros dos mestres ao entrar e sair, e cumprimentar o nosso professor quando ele chega e sai. Tudo o mais surge de maneira natural, como o respeito aos alunos mais velhos, que raramente são chamados de sirin, eu mesmo prefiro me referir como “irmão mais velho” que é a tradução do termo, sirin é um estrangeirismo que não me diz nada. Não existem treinos coletivos, cada um ao chegar treina o que quiser, pelo tempo que desejar, e recebe uma atenção proporcional ao quanto se esforça nos treinos e ao seu tempo de treinos. Só de vez em quando vejo alguém por lá usar o termo sirin, por exemplo, pois quando há esse ethos, importa mais o “como” do que “o que” se faz. Um dos hábitos que adotei, depois que um velho amigo me explicou o significado, foi o de pagar aos alunos um jantar depois de alguma exibição, ou algo que o valha, hábito excelente, pois normalmente vamos a um restaurante Cantonês fenomenal. Campbell, em seu livro O Poder do Mito, conta um “causo” interessante para explicar a diferença entre “regras” e um ethos:
No futebol americano, por exemplo, as regras são muito rigorosas e complexas. Se você fosse à Inglaterra, por exemplo, veria que as regras do rúgbi não são assim tão rigorosas. Quando eu era estudante, nos anos 20, havia uma dupla de jovens que formavam uma ala sensacional, especializada no passe de longa distância. Eles foram para Oxford, com uma bolsa de estudos, se inscreveram no time de rúgbi e um dia introduziram o passe dianteiro. E os jogadores ingleses disseram: “Bem, não temos regras para isso, portanto por favor não o façam mais. Não jogamos desse modo.” O fato é que, numa cultura que tenha se mantido homogênea por algum tempo, há uma quantidade de regras subentendidas, não escritas, pelas quais as pessoas se guiam. Há um ethos ali, um costume, um entendimento segundo o qual “não o fazemos dessa maneira”.
A maneira correta de se portar não serve a uma hierarquia, essa hierarquia que surge nas artes marciais emana na realidade, quando é genuína, de outros aspectos. E mais, a hierarquia serve ao indivíduo e não o contrário. Para que serve usar um comportamento ritualístico, diferente do da rua, ou da vida cotidiana normal ao se adentrar um recinto de treino? Primeiramente para se criar um Temenos, um espaço sagrado, onde cada ato, cada gesto é imbuído de um sentido que aponta para a transcendência. É uma maneira de colocar a psique em sintonia com aquilo que é eterno, “grave e constante no sofrimento humano”, para gerar um aprendizado genuíno, não de alguma técnica, mas da sabedoria daquilo que intemporal em nós, da experiência humana básica e do maravilhamento de estar vivo. Esse cuidado permite que nossa atenção esteja fixada no momento presente e permite que a técnica marcial seja um veículo da mente em direção ao mistério, e não um fim em si mesma. Além disso, em termos mais práticos, serve para desenvolver a atenção, e para um artista marcial atenção é tudo. Funakoshi, pai do Karate moderno narra uma história interessante para exemplificar o papel crucial desempenhado pela atenção dirigida e constante, mesmo fora do lugar de treino, para o artista marcial, o que obviamente implica uma transformação psicológica.
Tsukahara Bokuden, grande mestre espadachim, decidiu testar a capacidade de seus três filhos. Primeiro ele chamou seu primogênito, o jovem Hikoshiro. Ao empurrar a porta com o cotovelo para abri-la, Hikoshiro notou que ela parecia mais pesada do que seria normal e, correndo a mão ao longo da sua borda superior, encontrou e removeu um pesado apoio de cabeça feito de madeira deixado ali, recolocando-o cuidadosamente no devido lugar depois de entrar no quarto. Bokuden, então, chamou o filho do meio, Hikogoro. Quando Hikogoro, sem desconfiar de nada, empurrou a porta, o apoio de cabeça caiu, mas ele mais que depressa o pegou e o devolveu ao seu lugar de descanso original. Então Bokuden chamou seu caçula, Hikoroku. Quando Hikoroku, que de longe ultrapassava seus irmãos mais velhos no manejo da espada, escancarou energicamente a porta, o apoio de cabeça caiu e bateu no seu topete. Em uma ação reflexa, Hikoroku sacou da espada curta à cintura e cortou em dois o apoio de cabeça antes que batesse na esteira de tatami do chão. Bokuden disse aos filhos “Hikoshiro, o único que pratica o nosso método de Kenjutsu é você. Hikogoro, se você se exercitar e não desistir, algum dia poderá alcançar o nível do seu irmão. Hikoroku, no futuro você certamente causará a ruína dessa casa e trará vergonha para o nome do seu pai. Não devo ter alguém tão imprudente quanto você em casa”.
Em muitas artes marciais, o aspecto do respeito às normas e a hierarquia acaba se tornando um fim em si mesmo, e o marcial, confunde-se com o sentido simplesmente de militar, o que é um erro. Pois o sentido de marcial expresso na língua chinesa, por exemplo, difere do nosso. Em certas artes marciais japonesas acontecem também interpretações grosseiras devido ao desconhecimento de aspectos historicamente relativos a essas práticas. O rigor militar nas artes marciais japonesas modernas é algo que difere da maneira como tradicionalmente se eram praticadas, justamente devido à degeneração do ethos guerreiro, e o crescente militarismo japonês a partir da restauração Meiji e que culminou numa postura fascista. No Tao Te King lemos, “quando se perde o grande Tao/ aparecem a moralidade e o dever/ quando a inteligência e o saber prosperam/ surgem as grandes mentiras/ quando os parentes próximos discordam/ aparecem o dever filial e o amor/ quando os estados estão em desordem/ aparecem os funcionários leais”. No Japão, começou-se a louvar as qualidades do samurai justamente quando o ethos guerreiro começou a ser erodido, após a batalha de Sekigahara, com o início do pacífico período Edo, para alguns especialistas até mesmo o termo Bushido surge nesse período.
Nesse caso particular, o formato atual de muitas artes marciais japonesas modernas surge no período anterior à grande guerra, com o esforço do militarismo. Mestre Itozu, que foi professor do grande Funakoshi Gishin, criou os Katas da série Heian (uma forma simplificada) por ser um nacionalista e entusiasta do militarismo japonês, com o intuito de propagar o Karate para fortalecer a nação. O que no fim das contas resultou nos massacres hediondos e nos muitos crimes de guerra cometidos contra civis chineses alimentada pela crença na superioridade do povo japonês. Esse aspecto mais militarizado, com treinos coletivos e mais massificados – ao invés do método chinês que era originalmente copiado – e do rigor na aplicação das regras, com o intuito de formar soldados, surge desse contexto histórico. Todavia, alguns entusiastas acreditam estar treinando como os antigos samurais, e muitas vezes agem com rigor tal que até mesmo os samurais do século XVI se espantariam. Pois essas pessoas acreditam que o ideal social de samurai era a regra, e se esquecem que todo ideal de conduta e comportamento só raramente é alcançado. Mais tolo e anacrônico ainda, é o intuito de treinar para se tornar um “samurai” como alguns desses entusiastas parecem querer, alguns de maneira velada e outros as claras. Um mínino de conhecimento histórico bastaria para desvelar o absurdo desse tipo de comportamento. Mas por quais motivos isso ocorre? Donde advém essa dificuldade com o diálogo com a tradição venerável do oriente?
O Oriente, Índia, China e Japão e os demais países e povos que o habitam, são animados por uma série de metáforas míticas que difere grandemente das nossas, herdadas do humanismo grego e das mitologias levantinas dos Hebreus e de Zoroastro. Um dos princípios fundamentais de nossa cultura é a noção de indivíduo, cada um de nós é uma entidade única, com um destino e sentido para a vida a ser realizado de maneira individual, toda a nossa educação reforça esse aspecto de nossa cultura, ao ponto de termos chegado ao que alguns chamam de “paradoxo da pós-modernidade” tão agudo é nosso senso crítico que se torna difícil estabelecer alguma tradição, pois isso demanda aceitação e não incessante questionamento. Nossas metáforas míticas apontam justamente para isso, indivíduos que em substância são diferentes do mundo e de deus, que criou o mundo como mecanismo e existe apartado dele e de sua criação. O destino é individual, cabe a cada um como indivíduo descobri-lo, tanto é que nossa cultura gerou toda uma filosofia e um direito que justifica e respalda os direitos inerentes a cada ser humano como entidade autônoma. Jung chama atenção para a faculdade tipicamente ocidental do uso da vontade (energia livre disponível a consciência) que nos é inculcada e exercitada em nossa educação e que inexiste nos povos primitivos.
Ele, Jung, tem um exemplo interessante desse fato. Estando na áfrica, no monte Elgon (ele havia aprendido Suawili em um mês apenas) precisava enviar uma carta e se dirigiu a um sujeito que corria longas distâncias para entregar as cartas nos postos ingleses. Ele pediu ao sujeito que o fizesse, mas ele simplesmente o ignorou com grande apatia e desinteresse. Após algumas tentativas frustradas, alguém se aproximou e se dirigiu não ao sujeito, mas ao seu papel como mensageiro, sua “máscara” trazendo o bastão onde ele colocaria a carta e evocando com grandiloqüência a importância da missão e do grande homem branco que a estava requisitando e lembrando da importância do papel do mensageiro. Depois desse pequeno “ritual” o sujeito correu em um dia uns cem quilômetros para entregar a carta. Somente após um ritual adequado ter colocado em movimento as energias do sujeito em relação a um papel social impessoal e de validade eterna ele teve “ganas” de correr.
No oriente, não se espera que alguém seja um indivíduo, que pense, tenha idéias, seja criativo ou alimente dúvidas e esperanças. A premissa mítica fundamental é a de que existe uma ordem cósmica, que vem a ser um vazio inominado e impessoal de onde emana toda a forma e que mesmo os deuses são meros agentes desse vazio anterior a todo o nome, e que cada vida individual é na verdade uma ilusão, pois não é um indivíduo, mas uma emanação dessa totalidade universal e deve viver segundo essa ordem cósmica, seja ela chama de Tao, Dharma ou Bhraman. No Japão feudal, o ideal do samurai era a completa submissão, a aniquilação do seu ego e dos seus desejos em nome da perfeita consecução de seu papel social. Papel social este que lhe foi imposto ao nascer, como tudo o mais. Em japonês, samurai pode ser traduzido como “aquele que serve”, a tal ponto chegava essa submissão e a percepção da ilusão de identidade, mesmo com o corpo, que um dos mais nobres atos era o Sepukku, o suicídio ritual. Um senhor feudal poderia exigir sem qualquer explicação que um de seus subordinados rasgasse ritualmente o próprio ventre em sinal de submissão, diga-se de passagem, uma morte horrenda.
O ideal de educação oriental exclui ou considera abominável aquilo que consideramos válido ou fundamental. A educação consiste justamente em eliminar quaisquer idiossincrasias com o intuito de haver uma perfeita adequação a um papel pré-estabelecido. Campbell narra uma historieta Hindu interessante para ilustrar isso. Um jovem indiano chegou muito atrasado e seu professor foi questioná-lo para saber os motivos de seu atraso. O jovem retrucou que devido a uma enchente as pontes estavam destruídas e não havia barcos ou qualquer meio de atravessar as águas revoltas do rio. Intrigado o mestre perguntou como ele chegara à final de contas. O jovem respondeu que havia começado a pensar “guru, guru, guru” e com essa meditação caminhou pelas águas e chegou são e salvo. Depois da aula, o mestre resolveu testar esses poderes que ele desconhecia em si mesmo e começou a meditar “eu, eu, eu”, mas assim que se aproximou do rio caiu nas águas e se afogou.
O ideal de educação no oriente é a completa identificação com o mestre e a obediência sem questionar, na realidade, nada deve ser questionado. O ego é suprimido desde o princípio com a educação, assim, ao fim da vida, com facilidade um guru o ajuda a se desfazer dele. Além disso, as metáforas míticas do oriente apontam sempre para a unidade, todo o ser é na realidade uma mera casca ilusória e impermanente, que é uma emanação de um princípio eterno, esse sim indestrutível, o que os Indianos chamam de Atman. Enquanto a simbologia oriental aponta para a unidade com o princípio criador, nossas metáforas apontam para uma relação com esse princípio que se encontra fora de nós e com o qual não podemos nos identificar. Somos indivíduos no preciso sentido do termo e nos relacionamos com o eterno dessa maneira, como personalidades que vão até ele, e não como a gota d’água que redescobre sua identidade fundamental com o oceano.
Basta pensarmos no mito de criação Indiano e no mito Hebreu. Para os Hindus o ser primordial se deu conta de sua existência e sentiu medo, mas ao perceber que estava só o medo se dissipou e ele se sentiu solitário e desejou companhia, por isso se dividiu em dois, homem e mulher e os dois se uniram gerando a raça humana, mas a mulher se questionou “como ele pode se unir a mim se somos da mesma substância?” por isso se escondeu, virou uma vaca, e ele um touro e daí surgiram às vacas, e assim sucessivamente até as formigas. E ele se deu conta “eu realmente sou a criação, pois emanei tudo isso! Todo aquele que compreender isto, se torna ele próprio um criador nessa criação”. No nosso caso, nosso infeliz ancestral mítico Adão, criado do barro, foi feito para cuidar do jardim de deus, este ao ver aquele solitário criou os animais para que ele os nomeasse, mas os animais não eram tão divertidos assim – qualquer um que já foi a um zoológico sabe disso – então ele o fez cair num sono profundo e dele removeu uma costela para fazer Eva e aí sim ele ficou satisfeito – apesar de todas as complicações inerentes a mulher, certamente é algo mais divertido do que um bando de animais – nesse caso deus não se dividiu, ele dividiu o homem e ele é algo separado de sua criação, aquilo que é chamado de criatio ex nihilo, deus não criou o mundo partir de si mesmo, mas a partir do nada.
Temos então no oriente a submissão a uma ordem cósmica impessoal que se manifesta na sociedade ao qual as pessoas devem se adequar completamente, aniquilando desde a mais tenra infância seu ego em prol de seu papel social, esse sim eterno e indestrutível, e encarando seu ego e mesmo o seu corpo como ilusões passageiras que o mantêm afastado da realidade da unidade fundamental da criação, que pode ser alcançada ao se desempenhar corretamente seu papel nesta terra. Não que não haja submissão em nossas metáforas, vejam Jó, que mesmo sendo aniquilado por deus a ele se submete completamente, apesar de ser Jô o mais justo entre os justos. Mas aí entra, em nosso caso, o humanismo grego, Prometeu também estava sendo incansavelmente fustigado pelo todo poderoso Zeus, que o punia injustamente, o que ele faz? Manda Zeus catar coquinho, assim ele se refere ao pai dos deuses “ele é um monstro... não ligo a mínima para Zeus. Deixe-o fazer o que lhe aprouver”.
Uma vez conheci uma pessoa que havia ido ao Japão estudar por um tempo métodos pedagógicos e voltou espantada, considerando os métodos japoneses de ensino completamente arcaicos, e isso não faz lá muito tempo. Temos aí valores diversos, a adequação, a submissão, a imitação são valores enquanto para nós a crítica, o questionamento, a personalidade são valores. Sócrates é um herói cultural para nós, e o que ele fez? Ele preferiu a morte a se submeter às leis injustas de Atenas que o fariam trair aquilo em que acreditava, que o levariam a trair a si mesmo. Ele preferiu beber cicuta a se curvar as normas e regras de Atenas que iam contra suas convicções pessoais. Ele mandou à ordem social vigente as favas. E em larga medida nosso ideal é o de um desenvolvimento da personalidade similar, algo que Jung batizou de individuação, a busca por um sentido pessoal para a existência. Por outro lado, no oriente, encontramos a submissão a uma ordem cósmica impessoal.
E então voltamos ao ensino de artes marciais, que nasceram orientadas pelas metáforas míticas budistas, taoístas e confucionistas. Confúcio pregava um elevado grau de submissão aos pais, professores, e a sociedade, na figura do imperador – o filho do céu portador do mandato do céu – sua moral se baseava na obediência, na estrita adesão a certos costumes e maneiras corretas de agir herdadas dos antigos. Para o taoísta Lao Tzu, diante do grande Tao somos todos como cães de palha, em várias passagens se reforça a união mística com o princípio universal que está além de qualquer conceito e se deplora a personalidade, basta abrir e folhear um pouco o livrinho, por exemplo: “(...) Por isso é que o Sábio governa da seguinte maneira/ esvazia os corações e enche os estômagos/ enfraquece as vontades e revigora os ossos/e faz com que o povo fique sem conhecimento/e sem desejos/e providencia/para que os doutos não ousem agir/ ele pratica a não-ação/e em tudo reina a ordem” ou ainda em outra passagem: “céu e terra não são bondosos/ para eles, os homens são como cães de palha, destinados ao sacrifício/ O sábio não é bondoso/ para ele, os homens são como cães de palha, destinados ao sacrifício (...)” vemos aqui que o que se entende por sábio não é, como na Grécia, uma personalidade, mas alguém que se identifica completamente com “Céu e terra” com o curso natural e imutável, e isso só é possível justamente ao se aniquilar aquilo que para o ocidente é o que existe de mais caro: o indivíduo. O valor fundamental do Taoísmo é a renúncia ao eu, o que permite que a unidade fundamental de todas as coisas no Tão se manifeste naturalmente: “O céu é eterno e a terra duradoura/ eles são duradouros e eternos/por não viverem para si mesmos/isso os faz viver eternamente/assim também é o sábio/por menosprezar o seu eu/este aparece em primeiro plano/ele renuncia ao seu eu/e sua essência é preservada/não é assim:/por não querer nada para si/ele próprio se torna perfeito?”, creio que Lao Tzu não poderia se fazer mais claro.
E voltamos ao nosso dilema, que em particular me atormenta mais ou menos desde que tinha uns quatorze anos e que somente aos trinta consegui, ao menos, formular de maneira mais ou menos clara, e que vejo esse mesmo dilema refletido em muitos, mesmo que em outrem ele seja, ironicamente, irrefletido. Infelizmente, a maioria acaba tomando um dos dois caminhos a que me referi no começo, o que pessoalmente vejo como um problema, simplesmente mutilar a arte marcial de seus símbolos e metáforas não resolve nada. Assim como realizar essa mutilação em si mesmo é algo pior ainda, pois quem o faz se coloca fora da aventura do nosso tempo.
E estamos diante de um desafio e tanto, que é estabelecer esse diálogo entre bases culturais tão diversas. Na realidade, desde que o mundo se tornou um lugar pequeno, e não restou lugar para nos isolarmos, esse é um dilema que afeta a todos de uma maneira ou de outra. Pois bem, espero que ao menos aos sessenta em tenha conseguido uma resposta, já que já cheguei ao menos à pergunta, talvez, a resposta para tudo isso seja a do genial Douglas Adams: 42.