domingo, 16 de agosto de 2015

A postura correta do analista




Mas a própria vida brota ao mesmo tempo de fontes límpidas e turvas. Por isso falta vida a toda “pureza” demasiada. Toda renovação da vida passa pelo turvo e avança para o límpido. Quanto maior a limpidez e a diferenciação, menor será a intensidade de vida, precisamente porque foram excluídas as substâncias turvas. O processo de desenvolvimento precisa tanto de limpidez quanto de turvação.
C. G. Jung, Tipos Psicológicos, P.257.




Em uma perspectiva Junguiana, qual é a postura correta do analista? Como qualquer pessoa inteligente pode ver por si mesma, essa é uma pergunta capciosa. Basta nos lembrarmos do forte viés pragmático de Jung para perceber que a maneira como a pergunta foi formulada (e é assim que ela costuma ser formulada) induz ao erro.


Em termos pragmáticos, não existe interesse em respostas verbais, não há uma verdade exclusiva, mas muitas verdades, não temos a verdade, mas apenas verdades operacionais.


Mesmo assim, essa é uma questão que se reveste de grande importância, porém pode acabar se transformando em um pseudo-problema. Na maioria dos casos, a assim chamada postura correta diz respeito ao estabelecimento de uma persona medici, que é, ironicamente, o que não se deve cultivar, ou, ao menos, não de maneira exclusiva, muito menos como a coisa mais importante.


Por mais que o processo analítico possua regras operacionais, certamente o método dialético não pode ser confinado a aplicação mecânica dessas regras. O método depende fundamentalmente da personalidade do médico. Do quão longe ele foi no confronto com o inconsciente. Ao pensarmos assim, qualquer postura preconizada como a melhor, na maioria das vezes, servirá apenas para mascarar a personalidade do médico. Ao fazer isso, subtrai-se do paciente justamente a única coisa que pode ser genuinamente oferecida a ele: o efeito de sua personalidade na personalidade do médico.


Toni Wolf, analista que foi muito próxima de Jung e considerada por alguns até mesmo melhor clínica do que ele, atendia a seus pacientes sentada a mesa, não a frente deles, mas ao seu lado, fumando cigarros em uma longa piteira preta.


Jolande Jacobi, que era uma búlgara extrovertida e agitada, passava as sessões andando de um lado para o outro. Isso chegou a tal ponto que o vizinho de baixo a levou a justiça por perturbar sua paz com o barulho de seus passos. O juiz determinou que ela poderia andar de 8 até às 22 horas.


Um paciente de Marie Louise von Franz, ligou para ela desesperado e chorando, coisa que não era nada habitual para sua atitude corriqueira, e relatava estar em perigo. Ela lhe aconselhou a pegar um trem e vir a Zurique – ele morava numa cidade vizinha – ao chegar ele trazia consigo uma cesta de cerejas e eles comeram juntos alegremente e ela lhe perguntou “bom, e aí?”, mas ele não conseguiu contar o que havia de errado e já estava refeito.


Jung, certa feita, atendeu uma senhora que tinha o hábito de estapear seus terapeutas sempre que lhe diziam algo desagradável. Depois de passar por vários deles, acabou indo ter com Jung – que já lhe conhecia a fama. Quando ele lhe disse algo que não a agradou, ela se levantou para estapeá-lo, mas, para sua surpresa, Jung também se levantou com a mão em riste e disse “ladies first!”. Jung era famoso por ter uma robustez quase camponesa, e a senhora se sentou e o tratamento pode prosseguir sem maiores problemas.


A postura correta é aquela que melhor e mais verdadeiramente expressa à totalidade da personalidade do médico. Assim como o paciente deve afetar o médico, este deve afetá-lo com aquilo que ele verdadeiramente é. O problema de uma persona medici é que, normalmente, é algo bidimensional, não projeta uma sombra. Faz parte, necessariamente, da atitude do médico, não apenas sua autoridade e certezas, mas também suas dúvidas, medos e fraquezas.


O método dialético depende de uma elevada dose de coragem e altruísmo, entretanto a verdadeira coragem só se mostra quando sentimos medo. Junto do estudo, indispensável, da psicologia dos complexos, método de associação, filosofia, psiquiatria, religião e mitologia comparada, psicologia dos primitivos, deve vir também uma aguda consciência de nossas limitações, o que inclui o reconhecimento de que tudo o que julgamos saber sobre o paciente não passa de um preconceito e de que não nos é dado saber qual o destino de outrem.


A postura verdadeira deve emanar de sua verdadeira natureza e ser uma expressão dela. A principal verdade de quem cuida de almas deve ser a percepção de que existem muitas verdades e não apenas a nossa. Que o caminho do paciente, com todas as suas agruras, tropeços e vicissitudes, corresponde a sua (dele) resposta individual da imorredoura questão do sentido da vida humana. A postura correta não é um conjunto de regras estereotipadas como um manual de etiqueta, mas aquela que colabora positivamente para ajudar o paciente a escapar da estagnação causada pela neurose, a vencer a cisão que lhe dilacera a alma, mesmo que possa parecer com algo tão estapafúrdio como ficar caminhando de um lado para o outro incessantemente.

3 comentários:

  1. A melhor postura é aquela que não prejudica a coluna. A coluna do tratamento. Ótimo texto. Estás nas trilhas da clínica, sensacional!

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    1. obrigado! é uma trilha complicada, mas grandes homens já passaram por ela e podem nos inspirar a abrir novas estradas, ou ver o novo nos velhos caminhos

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  2. A melhor postura é aquela que não prejudica a coluna. A coluna do tratamento. Ótimo texto. Estás nas trilhas da clínica, sensacional!

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